Como o WhatsApp mobilizou os eleitores – para o bem e para o mal
Facilidade em manter-se conectado a familiares e amigos pelo aplicativo foi colocada em xeque pela enxurrada de informações falsas que circularam por ali nestas eleições
Com o celular nas mãos, em pouco tempo você pode avisar seus pais sobre os planos para o almoço de domingo, acertar algum detalhe de trabalho com um chefe, combinar um programa com o parceiro e pedir orçamentos para qualquer coisa. Não há como negar que o WhatsApp facilita muito a comunicação no nosso dia-a-dia. É rápido e fácil falar com mais de uma pessoa ao mesmo tempo.
Mas tem o outro lado: muita informação de origem duvidosa circula por ali. Quem nunca recebeu algum texto aterrorizante sobre o perigo das vacinas que o diga – e o reflexo claro é a redução da efetividade das campanhas de vacinação, que não atingem mais o público esperado. Com a eleição presidencial deste ano, isso chegou a um novo patamar.
Difícil quem tenha saído ileso de alguma discussão política no aplicativo, ainda mais para as pessoas que participam de muitos grupos. Os grupos que reúnem a turma de amigos de infância, a galera do futebol, os vizinhos do condomínio e, inclusive, o da família foram tomados por uma enxurrada de informações duvidosas que circulou por ali com pouco freio.
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Como é um serviço criptografado, há pouco o que inferir sobre o impacto que as notícias falsas terão sobre o resultado das eleições. Mas, pelas frestas que nos permitem espiar o que circula pelo app, como o Monitor de WhatsApp da Universidade Federal de Minas gerais (UFMG), não há como negar que o volume de desinformação que passou por ali foi enorme. E as consequências disso serão sentidas a longo prazo.
A popularidade do app
O WhatsApp tem um apelo diferente no Brasil – o mensageiro talvez só seja tão popular quanto aqui na Índia. Para Lucas Calil, pesquisador da FGV DAPP, há uma série de particularidades do aplicativo que o tornam tão popular por aqui: é uma ferramenta de amplo alcance na sociedade, com penetração em diferentes grupos demográficos e de diferentes perfis políticos.
A forma como se dá o fluxo de informação também faz diferença, porque é um processo de comunicação que difere do tradicional. “A transferência de comunicação é extremamente acelerada, muito conteúdo e muita gente, e não parte de um veículo, mas de forma fragmentada. São centenas de grupos que passam esse conteúdo à frente”, diz. A fragmentação, que passa aos grupos o papel de mediadores de conteúdo, facilita a replicação de desinformação e, como é difícil de acompanhar o fluxo de transferência dessas mensagens, tão mais complexo é fazer qualquer tipo de checagem.
A acessibilidade também faz diferença. Como lembra o professor Fabrício Benevenuto, cientista da computação e pesquisador da UFMG, os planos de telefonia no Brasil incluem acesso ilimitado a aplicativos como WhatsApp e Facebook. “Como o cara vai acessar um site como o Comprova [coalizão de verificação de boatos]? São coisas simples de serem feitas, mas sem acesso à internet, o WhatsApp e Facebook passam a ser o único veículo de informação para a muita gente. Quem ainda chega em casa e liga a TV?”, pondera.
Particularidades brasileiras
O caso de disseminação de notícias falsas no Brasil é bastante particular. Em 2014, o país já viu a força das redes sociais na eleição, mas as estruturas de campanha ainda eram bastante tradicionais: a capilaridade dos partidos e o tempo de TV faziam muita diferença.
Indícios de que essa situação poderia mudar já vieram de pleitos em outros países, sobretudo o americano. Nas últimas eleições nos Estados Unidos, o abuso em termos de boataria foi feito nos impulsionamentos e patrocínio de conteúdos, sobretudo no Facebook. O Brasil e as empresas de tecnologia se preparam para coibir esse comportamento.
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O TSE, por exemplo, regulamentou a propaganda eleitoral no Facebook, e a plataforma anunciou uma série de medidas para coibir as notícias falsas. Mas, aqui, a disseminação maior de conteúdos se deu pelo WhatsApp, um espaço sobre o qual se tem pouco controle e nenhuma regulamentação.
Para Lucas Calil, da FGV, a participação do cidadão comum no fluxo de comunicação, deixando de ser um processo passivo, ampliou o acesso e alcance a notícias de natureza política. E, nesse caso, pouco interessava a produção jornalística, que tenta estabelecer neutralidade.
“Aqui há uma quebra e você trabalha com determinados tipos de valores que são muito caros às pessoas, e mexem com aspectos emocionais e passionais. A transmissão de um conteúdo sensacionalista tem tanto valor de adesão porque reforça a percepção do sujeito”, aponta.
Uma possibilidade de espiar o que circulava por ali começou dentro do projeto Eleições sem Fake, da UFMG, coordenado por Benevenuto. O Monitor de WhatsApp verifica a atividade em 350 grupos públicos. Os resultados são críticos: entre agosto e outubro, das 50 imagens mais compartilhadas, apenas quatro eram verdadeiras.
Muitos outros boatos acabaram sendo verificados pelo Comprova, coalizão de veículos da qual a Gazeta do Povo faz parte e checa boatos que circulam pela internet.
De olho em 2020
A enxurrada de fake news, sobretudo no WhatsApp, não foi notada apenas por pesquisadores e jornalistas que trabalharam verificando conteúdos nessa eleição. É difícil quem tenha ficado imune ao recebimento de uma corrente falsa.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, o maior dano já estabelecido é em relação à imagem de algumas profissões – como é o caso de jornalistas e professores – e de instituições – como a Justiça. “A fake news tem esse poder: A pessoa não acredita mais em nada”, observa Fabricio Benevenuto, da UFMG.
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O que aconteceu até agora já nos dá casos e experiências para nos prepararmos para os próximos anos, principalmente para a eleição de 2020. “Esta eleição está bem decidida, mas estivesse pau a pau essa última semana seria pior”, diz Benevenuto.
Para ele, criar barreiras em uma plataforma faz com que as campanhas migrem rapidamente para outras – por isso, a avaliAção é da necessidade de soluções tecnológicas e equipes multidisciplinares pensando nas próximas eleições. “O que fica é o questionamento é: será que um sistema pode ser ao mesmo tempo coberto por criptografia e permitir viralização do conteúdo? São ferramentas de redes sociais debaixo de uma coisa anônima, não dá para saber o que aconteceu e nem auditar”, analisa.
O pontapé inicial para esse processo já foi dado, no entendimento de Lucas Calil, da FGV: começou quando as próprias redes sociais admitiram que suas plataformas envolvem produção de conteúdo e discursos, e não são simplesmente controladas por algoritmos. “A importância vertiginosa das redes sociais vai mudar totalmente a forma de fazer campanha nos próximos anos – custo, legislação, como são feitas e organizadas hierarquicamente”, avalia. E essa velocidade também vai pautar a mobilização de governo, empresas, comunidade acadêmica e sociedade no combate à desinformação e na busca por soluções visando um ambiente eleitoral mais salutar em 2020.