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Cultura democrática

A qualidade de uma democracia vai além do voto para presidente

Presidente tem muitos poderes na democracia brasileira, mas é apenas uma peça na engrenagem das instituições formais e informais

Renan Barbosa
Faixa presidencial guardada em uma caixa. Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula
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Uma das tônicas destas eleições foi a qualidade da própria democracia brasileira. O que quer que se pense sobre os candidatos à presidência, seus partidos e correligionários, cada lado da disputa enxergou o outro como uma ameaça mais grave às atuais regras do jogo. O resultado disso é que os brasileiros irão às urnas, neste domingo (28), mais polarizados do que nunca – e esperando do próximo presidente da República nada menos do que a refundação do país.

O sentimento é compreensível após uma crise econômica gestada por uma política equivocada dirigida pelo Poder Executivo, a Nova Matriz Econômica. Entre 2014 e 2016, o Produto Interno Bruto (PIB) caiu 8%, o PIB per capita caiu ainda mais – 9,1% –, o número de desempregados praticamente dobrou, chegando a 13,23 milhões em 2017. O Brasil passou a registrar déficits primários da ordem de R$ 150 bilhões, a dívida bruta saltou, no segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), de 51,54% do PIB para 67,65% até o impeachment e, em agosto deste ano, já batia em 77,33%. A confiança dos consumidores e do empresariado despencou.

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Somado a um escândalo de corrupção sem precedentes que sustentava a base do governo, enquanto os erros se acumulavam desde o segundo mandato do ex-presidente Lula (PT), e à crise na segurança pública, esse estado de coisas se reflete no humor do eleitor, que o Instituto Datafolha captou em pesquisa realizada no dia 2 de outubro*. Segundo a sondagem, 88% dos eleitores se declararam inseguros, 79% tristes, 78% desanimados, 68% com raiva, 62% com medo do futuro e 59% com mais medo do que esperança.

“O Brasil é um país onde o poder é particularmente concentrado no presidente da República, que reúne as funções de chefe de Estado e chefe de governo. Em um país de dimensões continentais, onde a carga tributária se concentra no governo federal, o presidente tem poderes quase imperiais”, explica o cientista político Fernando Schüler, professor do Insper. “É natural que exista uma atenção especial à presidência da República”, diz.

Henrique Raskin, mestre em Ciência Política pela Universidade de Columbia e gestor de pesquisas do Instituto Atuação, uma associação sem fins lucrativos que tem como objetivo transformar o Brasil em uma democracia plena a partir de iniciativas em nível local, reconhece que o Brasil tem um histórico de centralização política na figura do presidente, mas enxerga no exercício cotidiano da democracia a possibilidade de os brasileiros entenderem que nem tudo depende do presidente da República.

“O Brasil ainda está aprendendo que a democracia é o jogo do debate e das ideias que se contradizem, para além da determinação do presidente, que não precisa sintetizar o espírito do país. Essa pessoa eleita vai ter um cargo político, com determinadas funções, por um determinado momento”, diz.

Instituições formais

De fato, presidente nenhum governa sozinho. Em 1987, o cientista político Sérgio Abranches, analisando o processo constituinte que se desenrolava, à luz da experiência da República de 1946-1964 e do sistema político de outros países, cunhou o termo “presidencialismo de coalizão” para descrever o “dilema institucional brasileiro”. Na visão de Abranches, a combinação entre um presidente poderoso e um Congresso eleito por um sistema proporcional que tende à fragmentação leva à necessidade de contínuas renegociações na base de apoio do governo.

O artigo seminal de Abranches criou toda uma tradição para explicar o funcionamento do sistema político no Brasil. Nos anos 1990, com base em pesquisas empíricas, os cientistas políticos Fernando Limongi e Argelina Figueiredo deram um passo além e mostraram que, a despeito desse dilema institucional, os presidentes brasileiros conseguiram razoável sucesso nessa empreitada, graças justamente à sua capacidade de pautar a agenda do Congresso e de distribuir benesses aos aliados, aliadas à força das lideranças partidárias, que concentram as negociações com o Executivo.

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Mais recentemente, o cientista político Bruno Carazza, autor de Dinheiro, Eleições e Poder – As Engrenagens do Sistema Político Brasileiro, confirmou o diagnóstico dos autores, mas enfatizou os altos custos dessa operação. Com base em dados de financiamento das campanhas e nas revelações da operação Lava Jato, Carazza mostra que “o alto preço cobrado pelos partidos para garantir a governabilidade dos presidentes da República tem ficado mais explícito” e cada vez mais pesado sobre a sociedade. A Lava Jato que o diga.

A proibição do financiamento de campanhas por pessoas jurídicas, estabelecido por decisão do Supremo Tribunal Federal em 2015, foi uma resposta a isso, à qual o Congresso Nacional respondeu com a criação do Fundo Eleitoral, que distribuiu cerca de R$ 1,7 bilhão para as campanhas este ano. Para Carazza, no entanto, são necessárias reformas mais amplas, que enfrentem dois problemas básicos: a seleção adversa de regras que induzem escolhas equivocadas e o risco moral do cometimento de delitos.

“Para reduzir a seleção adversa, precisamos de sistemas eleitorais que privilegiem candidaturas mais baratas (distritos menores, com campanhas mais simples e limites de gastos baixos), partidos com estruturas mais transparentes e democráticas (minando o poder dos velhos caciques que controlam a arrecadação e a distribuição de dinheiro, e combatendo as legendas de aluguel) e fontes de financiamento pulverizadas – partidos e candidatos têm que buscar dinheiro junto aos seus eleitores, e não no orçamento público ou em grandes empresas”, propõe.

“No combate ao risco moral, precisamos eliminar um amplo sistema de incentivos que contribui para a sensação de impunidade de quem exerce o poder: fim do foro privilegiado, regras de prescrição menos benéficas, forte restrição dos recursos protelatórios, punições maiores ao crime de caixa 2, melhor integração dos órgãos de controle”, sugere.

Convicção da Gazeta: O valor da democracia

Fernando Schüler também enxerga a necessidade reformas e vê aberta uma janela de oportunidade com a renovação que sai das urnas neste ano. “O próximo presidente, se quiser deixar um verdadeiro legado, deveria imediatamente apresentar um grande projeto nacional de reestruturação do sistema político. Nosso sistema de voto proporcional em lista aberta, associado a um sistema de pulverização partidária, reeleição, de voto obrigatório, financiamento agora estatal, e recheado de instrumentos patrimoniais, como a proliferação de cargos de livre nomeação política e a concessão de emendas individuais ao orçamento, todo esse sistema faliu”, resume o professor do Insper.

Apesar de todas as disfunções do sistema político e de problemas que ele ainda não conseguiu equacionar, como a qualidade da educação e a crise na segurança pública, Schüler ressalta que o presidencialismo de coalizão produziu resultados nesses últimos 30 anos. “Fizemos reformas importantes, mesmo agora em um governo de transição [de Michel Temer, do MDB], como a reforma trabalhista, sindical e a PEC do Teto”, diz.

Um desses resultados positivos é também a moderação das posições políticas. “Quando aparecem posições mais extremadas, a sociedade civil, a imprensa livre, o Supremo Tribunal Federal, todos reagem com força. Há elementos autoritários na retórica do Bolsonaro, mas também na esquerda. Só que, no Brasil, nós nos acostumamos com isso na esquerda. Na direita, o próprio Bolsonaro tem recuado e atuado como uma espécie de moderador da própria campanha”, afirma. “A democracia é uma máquina de moderar posições”, resume.

Crise de confiança

Mesmo que o país aproveite essa oportunidade de reformas, ela não pode ser concebida como uma panaceia. As instituições formais importam, mas não são tudo. “Este é um ponto em que quase ninguém toca: a democracia não vai resolver todas as questões. Quando você leva todos os temas para a política, o resultado só pode ser a radicalização, o acirramento e o ódio”, diz Schüler. “Isso acaba gerando um ciclo de radicalização a um ponto tal que você passa a enxergar quem pensa diferente como inimigo e não mais como adversário”, afirma.

Convicção da Gazeta: Cultura democrática

“Nesta eleição, temos um elemento novo, que é a lógica da guerra cultural. Antes de tudo, é um movimento global nas grandes democracias. O homem comum está ingressando nas democracias pelas redes sociais e em função da revolução tecnológica”, diz Schüler. “Com isso, as pessoas trazem para a política pautas muito diferentes daquelas que eram pautas tradicionais das lideranças institucionais – e essas pautas, em grande medida, têm a ver com o cotidiano, as crenças e os valores das pessoas”, acrescenta.

Nos Estados Unidos, onde a oposição política entre democratas e republicanos já está arraigada há mais tempo, os efeitos da polarização se fazem sentir com mais clareza. Nos anos 1960, apenas 4% dos democratas e 5% dos republicanos se sentiam contrariados se seus filhos se casassem com alguém de orientação política contrária. Em 2010, esse número já tinha saltado para 33% entre os democratas e 49% entre os republicanos. Além disso, uma sondagem da Pew Foundation mostrou que, em 2016, durante a campanha presidencial, 55% dos eleitores democratas tinham medo dos republicanos e 49% dos republicanos, dos democratas. Foi o maior índice desde que a pergunta começou a ser feita, em 1992.

Essa desconfiança generalizada opera para minar as bases da democracia. O sociólogo Robert Putnam, no seu clássico Jogando Boliche Sozinho – Colapso e Ressurgimento da Coletividade Americana, estudou a erosão do capital social nos Estados Unidos entre a década de 1960 e 2000. “Uma sociedade caracterizada pela reciprocidade generalizada é mais eficiente do que uma sociedade desconfiada, pela mesma razão que o dinheiro é mais eficiente que o escambo. Se não temos que compensar cada troca instantaneamente, podemos realizar muito mais. A confiabilidade lubrifica a vida social”, explica Putnam.

Se o brasileiro está votando nestas eleições com medo e com raiva, a desconfiança é uma velha conhecida do país. A última sondagem do Instituto Latinobarometro mostrou que apenas 7% dos brasileiros confiam na maioria das pessoas. Estamos sempre entre os mais desconfiados na América Latina. Na Noruega, que está no topo dos índices que medem a qualidade da democracia, esse número chega a 73%, segundo dados do World Values Survey.

A desconfiança das instituições, e da própria democracia, não fica atrás. De acordo com dados do último Índice de Confiança na Justiça (ICJ) da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), apenas 6% dos brasileiros confiam no governo federal; 7% no Congresso Nacional e em partidos políticos; 24% no poder Judiciário; 26% na polícia; e 28% no Ministério Público.

De acordo com os dados mais recentes do Latinobarômetro, 43% dos brasileiros acham que a democracia é uma forma de governo preferível a todas as outras, 13% estão satisfeitos com a democracia e apenas 1% acredita viver em uma democracia plena. Em uma escala de 0 a 10, damos nota de 4.4 para nossa democracia.

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Esse déficit de cultura democrática se reflete quando a qualidade da democracia no Brasil é colocada em perspectiva. No último Índice de Democracia da Unidade de Inteligência da revista The Economist, somos considerados uma “democracia falha”: estamos na 49.ª posição (nota 6.86 de 0 a 10) entre 167 nações, com notas especialmente ruins nos quesitos funcionamento do governo, participação política e cultura política – nesse último, estamos abaixo da média mundial, principalmente pela falta de confiança na própria democracia, segundo a avaliação do próprio Índice. A nota em funcionamento do governo despencou a partir de 2015, reflexo da crise político-econômica. Já em participação e cultura políticas, estamos mal desde a primeira medição, em 2006.

É com base nesse diagnóstico que o Instituto Atuação desenvolveu o Índice de Democracia Local, que pode ser aplicado em qualquer cidade do mundo e cuja primeira medição, em Curitiba, foi divulgada este ano. Refletindo um cenário que provavelmente pode ser encontrado no restante do país, a cidade pontuou, numa escala de 0 a 100, 65.6 em processo eleitoral; 64.2 em direitos e liberdades civis; 56.3 em funcionamento do governo local; mas 38.9 em cultura democrática e 22.3 em participação política. O Instituto trabalha agora no desenvolvimento de um modelo para melhorar esses índices.

Dados como esses são relevantes, segundo Henrique Raskin, porque muitas vezes o Estado e o sistema político são pensados como o fundamento da vida social, quando na verdade são consequências de uma história, de uma cultura e de valores mais básicos. “Nesses momentos de grande debate como o que estamos vivendo, a democracia vê surgir não algo que está nos candidatos, mas algo que a sociedade manifesta a partir dos candidatos”, resume.

Instituições informais

Essa mudança de perspectiva ao enxergar a política é compartilhada por Lucas Mafaldo, analista de políticas públicas e pós-doutor pela Universidade de Ottawa, no Canadá. “Há um limite tanto para as instituições como para os agentes políticos”, diz. “A política, na melhor das hipóteses, serve para arbitrar os conflitos existentes da sociedade civil. Porém, apenas no nível da própria sociedade civil – por meio da educação, do diálogo e da formação de laços sociais – é que esses conflitos podem ser dissolvidos, com a difusão de valores positivos que alimentem uma sociedade produtiva e colaborativa”, explica.

De fato, há um número crescente de acadêmicos estudando fatores informais que sustentam a qualidade das democracias. Um deles é Larry Diamond, professor de sociologia e ciência política na Universidade de Standford. Diamond, que tem escrito sobre o fenômeno da recessão de democrática ao redor do mundo, enfatiza, por exemplo, a importância da sociedade civil em transições democráticas e na sustentação das democracias.

No artigo “Repensando a Sociedade Civil – Em Direção à Consolidação Democrática”, Diamond esquematiza 10 funções da sociedade civil em uma democracia: conter o poder dos governos; estimular a participação política em sentido amplo e canalizar interesses, complementando a função dos partidos; fomentar, pela participação, virtudes democráticas como a tolerância e a moderação; gerar capacidade de influência nos governos e em questões locais (impacto coletivo).

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A sociedade civil também atenua os extremos políticos, gerando consensos sobre questões políticas; recruta e treina novos líderes políticos; monitora o sistema político e cobra transparência dele; dissemina informações, reduzindo o déficit informacional entre os cidadãos e grupos políticos. Por fim, Diamond ressalta que, pela atuação vigorosa, a sociedade civil ajuda o Estado a governar, aliviando as expectativas sobre o governo formal e reduzindo assim o risco de crises políticas agudas.

Em um nível ainda mais elementar, as próprias famílias funcionam como instituições que ajudam a azeitar o funcionamento das democracias. Primeiro, porque está bem estabelecido nas ciências sociais que famílias estruturadas têm impactos positivos no florescimento econômico, psicológico e social dos indivíduos, e correlação com níveis mais baixos de criminalidade, desemprego e problemas de saúde.

Segundo, como mostra o cientista político Scott Yenor, autor de um livro sobre a ideia de família no pensamento político ocidental, porque há uma afinidade eletiva entre a família e o ideal democrático, que equilibra autoridade e liberdade. De acordo com Yenor, o casamento responde, pelo exercício do consentimento responsável, às pressões dos desejos humanos, ajudando a ordená-los, fomentando o autocontrole, a responsabilidade individual e o senso de longo prazo, requisitos do autogoverno democrático.

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Além disso, a família prepara os indivíduos para uma vida adulta responsável, por meio da supervisão e correção de seus afetos e caráter pelos pais e cria um espaço de responsabilidades e sentimentos compartilhados, o que fornece um modelo de interação para outras formas de associações intermediárias na sociedade civil, limitando naturalmente o poder do Estado.

“Precisamos sair dessa camisa de força e ver que o mundo é maior do que a política, e a ética é muito mais pessoal e direta que os partidos”, diz Mafaldo. “A sociedade se ergue quando seus membros se concentram em se tornar mais inteligentes, mais produtivos e mais caridosos – todas essas ações são atos que podemos fazer pessoalmente, sem passar pelo crivo de nenhuma ideologia e sem precisar esperar por um ciclo político”, completa. É um bom recado para quem vai – e quem não vai – às urnas neste domingo.

Metodologia da pesquisa citada

*Pesquisa realizada pelo Datafolha em 2/out com 3.240 entrevistados (Brasil). Contratada por: EMPRESA FOLHA DA MANHA . Registro no TSE: BR-03147/2018. Margem de erro: 2 pontos percentuais. Confiança: 95%.

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