Democracia aprofundada, com uma política moralmente exemplar
Acreditamos que não existe alternativa à democracia e que ela pode funcionar melhor
Se diminuir o tamanho do Estado brasileiro, dar eficiência aos gastos públicos e reduzir a burocracia é o caminho para melhorar a posição do Brasil no Índice de Liberdade Econômica, onde o país amarga a vergonhosa 153ª posição entre 180 países, investir na cultura política democrática é fundamental para tornar o Brasil uma democracia plena no Índice de Democracia da Unidade de Inteligência da revista The Economist, um dos indicadores mais completos sobre o tema. Atingir esse objetivo exige algumas reformas institucionais, mas o sucesso da agenda democrática depende de toda a sociedade.
O que ocorreu nos últimos anos foi que os brasileiros assistiram estarrecidos às revelações de um sem número de casos de corrupção, organizados em um sistema criminoso de governo sem precedentes; à degeneração do presidencialismo de coalizão em um presidencialismo de cooptação; a um Congresso que perdeu a oportunidade de fazer a reforma política e uma série de reformas econômicas, enquanto os parlamentares se encastelavam no foro privilegiado para escapar à aplicação da lei. Formou-se a tempestade perfeita que conjugou uma crise econômica e política a uma crise moral e cultural de fundo, que se reflete em uma cultura política bastante débil.
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Para que o Brasil volte a crescer e sustentar seu desenvolvimento, uma profunda reforma de Estado é necessária. O verdadeiro caminho, no entanto, para tirar de vez o Brasil dessa crise passa por aprofundar a cultura política democrática e resgatar a dimensão moral e cívica dos homens públicos. Democracia não é uma questão de tudo ou nada: ao contrário, ela é uma forma de governo sempre por se aperfeiçoar e que exige, na medida da vocação dos cidadãos, um empenho responsável de cada um. Há espaços para agir em todos os campos da vida social.
Valorizamos a democracia porque é a única forma de governo que respeita plenamente a dignidade humana e permite aos cidadãos desenvolver ao máximo suas potencialidades. Mas ela é também a forma de governo mais “resiliente” que conhecemos: a “resiliência” de um sistema social representa sua capacidade de lidar com mudanças complexas e crises, sobreviver a elas e recuperar-se de choques.
Essa faceta das democracias, que a brasileira vem demonstrando desde 2013, foi enfatizada recentemente pelo relatório “The Global State of Democracy – Exploring Democracy´s Resilience” do Instituto IDEA, um dos maiores centros de pesquisa em democracia no mundo. Um dos objetivos do relatório é matizar a percepção catastrofista de que a democracia estaria em estado terminal.
Seja como for, é importante ter presente que a democracia não cai do céu. Para responder a essa ressaca que estamos vivendo, a sociedade brasileira deve investir em capital social, aumentar os níveis de confiança e fazer as reformas institucionais mais urgentes. Tendo em vista o contexto eleitoral, só será capaz de liderar o país nessa trilha um presidente arrojado e com uma profunda disposição democrática que consiga comunicar esse projeto, engajar o eleitorado e dialogar com o Congresso.
Fortalecer a sociedade civil
Depois que o sociólogo James Coleman e o cientista político Robert Putnam popularizaram a noção de capital social, inúmeros estudos vêm mostrando a correlação entre a densidade de redes de relações sociais e a qualidade da democracia, da educação, da segurança pública e até resultados econômicos mais robustos.
“Uma sociedade de muitos indivíduos virtuosos, mas isolados, não é necessariamente rica em capital social.”
Desde vizinhos que se ajudam a ficar de olho nas residências e evitar roubos, passando por associações que oferecem bolsas de estudo para estudantes pobres e encontros religiosos que dão apoio psicológico aos fiéis, até as cooperativas agrícolas que estão na base da pujança do oeste paranaense, todas essas são formas de capital social que fortalecem as democracias a partir da base.
O capital social permite soluções mais efetivas e duradouras para problemas coletivos, fomenta a solidariedade social, diminui a assimetria de informações entre cidadãos e os custos de transação das relações sociais. As redes de associações privadas, como explica Putnam, contribuem para a democracia por seus efeitos externos e internos. Externamente, elas ampliam as vozes e a capacidade dos cidadãos que, isolados, não teriam impacto algum. Internamente, elas contribuem para a saúde psicológica dos indivíduos e os capacitam para a vida pública: são, em certo sentido, “escolas de cidadania”.
O próprio Putnam resume a questão na introdução de seu clássico Jogando Boliche Sozinho – Colapso e Ressurgimento da Coletividade Americana: “Uma sociedade de muitos indivíduos virtuosos, mas isolados, não é necessariamente rica em capital social”. Indivíduos notáveis, sozinhos, são capazes de causar impactos isolados. Juntos, em associação, são capazes de causar impacto coletivo. A farta literatura sobre o tema aponta também que, onde há alta densidade de capital social, o governo tende a funcionar melhor e as políticas públicas, a trazer melhores resultados.
Alguns estudos apontam o mesmo no Brasil. As pesquisas de Pedro Bandeira, Everton Santos e Marcello Baquero encontraram correlação entre capital social satisfação das pessoas com as políticas públicas no Rio Grande do Sul. A diferença nas matrizes de colonização no Norte e no Sul do estado ajudaram os pesquisadores a replicar o estudo de Robert Putnam que descobriu, na Itália, uma correlação entre engajamento civil e desempenho do governo das diferentes regiões administrativas estabelecidas nos anos 1970. Renato Boschi chegou a conclusões parecidas comparando a governança urbana de Belo Horizonte e Salvador.
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Por isso a importância, em um momento eleitoral, de candidatos capazes de engajar a população pelo debate público, de liderar pelo exemplo moral que se reflita, por exemplo, no estilo de trabalho, na formação do Ministério e na relação com o Congresso, e de superar a polarização estéril em busca de soluções pactuadas, negociadas e orientadas pelo bem comum. Isso garante que a vida comunitária não degenere em política identitária e tribalismo, nem que o espaço público seja capturado pelos extremos ideológicos que veem uns aos outros como inimigos, inibindo assim a cooperação e a criatividade das soluções compartilhadas e diminuindo a eficiência das ações públicas.
Um bom exemplo de esforços para superar polarizações estéreis e investir no protagonismo comunitário tem vindo do Reino Unido, onde lideranças e intelectuais dos partidos Trabalhista e Conservador, como Lord Glasman e o filósofo Philip Blond, vêm se empenhando em dar vida aos “Trabalhistas Azuis” e aos “Conservadores Vermelhos”. Os nomes espirituosos poderiam ser lidos, no contexto brasileiro, como “esquerda azul” e “direita vermelha”.
Na busca por superar falsas dicotomias políticas que só fazem polarizar a vida social e impedir que soluções inovadoras e eficientes para os problemas sociais venham à tona, embora se filiem de alguma maneira à direita e à esquerda, esses dois movimentos têm investido na política comunitária, no protagonismo dos cidadãos em seus locais de moradia e trabalho e na redução da burocracia estatal centralizada.
Há iniciativas promissoras na sociedade brasileira. A Rede Nossa São Paulo já reúne mais de 700 organizações que tentam pensar soluções para diversos problemas da cidade. O Instituto Atuação, de Curitiba, lançou um projeto mundialmente inovador, um Índice de Democracia Local que pode ser aplicado a qualquer cidade e oferece um diagnóstico da cultura política local. O Índice faz parte do projeto Cidade Modelo, que quer transformar Curitiba na cidade mais democrática do Brasil. Do ponto de vista da educação política, escolas de Parlamento no Paraná, em São Paulo e em outros estados, e projetos de educação cidadã, como os do Mobis, em Porto Alegre, e o Cidade Mirim, em Curitiba, são bons exemplos que podem ser propagados.
Fomentar a confiança
A busca pela cooperação e pelo fortalecimento da vida comunitária pode esbarrar na desconfiança generalizada. Em um ambiente social repleto de cinismo, oportunistas vão burlar as regras buscando ganhos individuais, o que aumenta custos de transação e a burocracia no ambiente de negócios e enrijece o poder público, que precisa apostar em uma batelada de normas e sanções para garantir um mínimo de igualdade formal entre os cidadãos.
Esse é um problema crônico do Brasil que tem impacto direto sobre a qualidade de nossa democracia. De acordo com dados do último Índice de Confiança na Justiça (ICJ) da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), apenas 6% dos brasileiros confiam no governo federal; 7% no Congresso Nacional e em partidos políticos; 24% no poder Judiciário; 26% na polícia; e 28% no Ministério Público.
Essa desconfiança generalizada nas instituições reflete-se também em uma desconfiança na própria democracia: de acordo com os dados mais recentes do Latinobarômetro, 43% dos brasileiros pensam que a democracia é uma forma de governo preferível a todas as outras, 13% estão satisfeitos com a democracia e apenas 1% acredita viver em uma democracia plena. Em uma escala de 0 a 10, damos nota de 4.4 para nossa democracia.
É de se destacar que, na base de toda essa desconfiança, estão os baixos índices de confiança entre as próprias pessoas. De acordo com os dados do Latinobarômetro, o Brasil tem o menor índice de confiança interpessoal da América Latina, uma região já cronicamente desconfiada: apenas 7% dos brasileiros confiam na maioria das pessoas. É uma das notas mais baixas do mundo. No mundo Ocidental, há uma afinidade eletiva entre confiança, democracia e desenvolvimento: na Noruega, que está no topo do Índice de Democracia, 73% das pessoas confiam umas nas outras, de acordo com dados do World Values Survey.
Mas como se fomenta a confiança? No contexto brasileiro, primeiro é preciso continuar apostando no combate à corrupção. As pesquisas do Instituto Qualidade do Governo (QoG, na sigla em inglês), liderado pelo sueco Bo Rothstein, mostram que a corrupção é o principal fator erosivo da confiança em uma sociedade. Os estudos de Rothstein mostram que as melhores práticas buscam a sinergia entre o funcionamento das instituições e os princípios das pessoas: assim como não pode haver combate à corrupção sem incentivos e punição exemplar, uma sociedade não se tornará menos corrupta no longo prazo sem uma mudança ética nos valores dos cidadãos.
Os dados do QoG mostram também que a percepção da equidade na aplicação da lei, no trato com os operadores da segurança pública e da qualidade dos tribunais é determinante para os níveis de confiança social, um ativo democrático que atrai cada vez mais pesquisadores e gestores que desejam fortalecer a democracia.
Por isso, o Poder Judiciário deve aumentar a transparência e adotar uma gestão moderna para desafogar o topo do sistema judicial. Por isso, vemos com bons olhos a iniciativa do Congresso Nacional de reduzir drasticamente o foro privilegiado. Deve-se abandonar o ativismo judicial, que é um fato de insegurança e iniquidade, a começar pela orientação dos novos ministros indicados para o Supremo Tribunal Federal (STF). Também é necessário cuidar das pontas do sistema: a integração e o compartilhamento de informações em polícias, Ministério Público e Judiciário, bem como a abertura de canais de diálogo com associações comunitárias, são fundamentais para fomentar a confiança.
Níveis de confiança ao redor do mundo
Reformas institucionais
Inúmeras evidências têm mostrado a existência de uma sinergia entre governos imparciais dotados de funcionalismo técnico e uma sociedade civil forte, em relações de cooperação, não de captura – o que, se reflete, no campo econômico, nas parcerias público-privadas (PPP). É por isso que, embora o investimento em cultura democrática seja imprescindível para o Brasil, há ajustes institucionais que não podem ser negligenciados. Os mais urgentes, do ponto de vista político, são uma revisão do federalismo brasileiro e a adoção do voto distrital misto.
A opção pelo federalismo é um reflexo da ideia de que instâncias locais devem assumir a responsabilidade pelas questões que têm condições de resolver por si mesmas. No entanto, o federalismo brasileiro – que compreende a União, estados e municípios –, vem acumulando um sério problema vertical, que são distorções nas regras de arrecadação tributária e competências para prover serviços entre os entes federados. A autonomia local acaba sufocada.
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Estados e municípios arrecadam pouco para dar conta dos problemas que têm de resolver. A União fica com a maior parcela dos recursos arrecadados – cerca de 70% –, e estados e municípios dependem de repasses nem sempre transparentes e periódicos, o que abre a porta para negociatas e impede os gestores locais de terem uma previsão adequada do fluxo de caixa, fundamental para a gestão. As discussões sobre reforma tributária precisam voltar a enfrentar essas distorções.
Há também um sério problema horizontal: municípios e estados de realidades e necessidades diversas estão submetidos a um mesmo conjunto de regras, às vezes muito detalhadas, de vinculação de gastos, engessando os orçamentos, que se tornam insensíveis às demandas locais. Os entes federados precisam ter mais flexibilidade e autonomia no uso dos recursos de acordo com suas necessidades, que variam muito de região para região.
Da mesma maneira, a adoção do voto distrital servirá para aproximar o representante político do cidadão, tornando-o mais sensível às realidades locais como representante de distritos específicos dentro de estados e municípios. Afinal, mesmo uma sociedade vibrante e rica em capital social pode se ver estrangulada por um governo distante e centralizador, que aumenta os custos de participação em qualquer decisão e enfraquece a vida comunitária. O voto distrital também diminuirá os custos das campanhas, reduzindo o incentivo à corrupção. Reconhecemos, no entanto, que o voto distrital puro pode causar distorções importantes na representação e, por isso, defendemos o modelo distrital misto, em que parte das cadeiras no Legislativo é preenchida pelo voto em legenda.