Paz social, sem o abandono dos mais necessitados
O governo tem de reconstruir a capacidade de atender os mais frágeis
A agenda de desenvolvimento do Brasil não será completa se não aliar oportunidades de melhora social aos direitos políticos e econômicos. Esses são fatores que se retroalimentam em uma sociedade liberal.
Como argumenta o economista Amartya Sen, que recebeu o Nobel de Economia em 1998, a iniciativa individual é central para lidar com a miséria e a privação, mas muitas vezes essa liberdade individual é tolhida pelas oportunidades políticas, econômicas e sociais que estão disponíveis às pessoas. Seu argumento no livro “Desenvolvimento como liberdade” é o de que o desenvolvimento consiste na remoção de barreiras que deixam às pessoas poucas escolhas e poucas oportunidades de exercer suas próprias iniciativas.
“O apoio aos mais necessitados, portanto, não é uma questão que demanda mais recursos, mas sim de uma melhor alocação do que já existe.”
Dentre essas barreiras, estão a miséria absoluta, a falta de condições básicas de saúde, falta de acesso aos meios de educação e segurança, por exemplo. E, mais importante, não compete apenas ao Estado remover essas barreiras. Outros arranjos da sociedade, como suas instituições legais, o mercado e a mídia, fazem parte do caminho para se aumentar a liberdade do indivíduo, que precisa ser visto como agente da mudança, e não como recipiente passivo de benefícios.
O Brasil avançou bastante na agenda social nas últimas duas décadas, mas precisa fortalecer uma visão mais ampla de desenvolvimento, que vá além da construção de um sistema de benefícios para os mais vulneráveis. A agenda social precisa ser vista como uma forma de aperfeiçoar as liberdades políticas e econômicas. Uma parte expressiva da população brasileira está exposta a barreiras que precisam ser superadas – o domínio do tráfico e milícias e algumas regiões, a falta de acesso a consultas básicas de saúde em outras, ou a falta da renda mínima para a compra de alimentos.
Embora nenhum desses problemas tenha solução com a ação única do Estado, há muito que um próximo governo pode fazer para ajustar políticas públicas e articular parcerias com entidades da sociedade civil. E isso começa pelo básico, a renda mínima para a camada mais miserável da população.
Além do Bolsa Família
O Brasil continua com uma parcela grande da população com renda insuficiente para a subsistência. O número de pessoas nessa situação varia de acordo com a abordagem, já que a instituição de uma “linha da miséria” é arbitrária. São 20 milhões de pessoas na pobreza, ou 10% da população, segundo cálculo da FGV Social, com base em números da PNAD. Para comparações internacionais, o Banco Mundial coloca o Brasil entre países de renda média-alta e, em seus cálculos, seriam 45,5 milhões de pessoas na pobreza.
Nas duas contas, fica clara a evolução do Brasil após a consolidação dos programas de transferência de renda que, em conjunto com um aumento da renda do trabalho advinda do ciclo de crescimento econômico que se encerrou em 2014, permitiram que a taxa de pobreza caísse à metade de 2004 para cá.
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Essa experiência na redução da miséria precisa agora evoluir. A recomendação do Banco Mundial é para que o Brasil revise seus gastos com assistência social para torná-los mais eficientes. O país tem oito benefícios considerados assistenciais e, segundo economistas do banco que fizeram um relatório sobre as contas públicas brasileiras, apenas o Bolsa Família atinge o objetivo de beneficiar prioritariamente os mais pobres. Ele é o que atinge mais pessoas (40 milhões), mas tem o menor valor de benefício mensal médio.
O benefício de prestação continuada (BPC), a aposentadoria concedida a quem não contribuiu para a Previdência e é considerado pobre, concentra 70% dos benefícios à camada dos 60% mais ricos da população. Somente 12% do dinheiro chega aos 20% mais pobres – a relação do Bolsa Família é de 57% para os 20% mais pobres, sendo que o valor do benefício é de um terço do que o concedido pelo BPC, em média.
Essa assimetria é verificada em outros benefícios previdenciários e programas de mercado de trabalho. O abono salarial, por exemplo, concedido a trabalhadores que recebem até dois salários mínimos, custa R$ 17 bilhões por ano e direciona apenas 10% desse valor aos 20% mais pobres. Nas aposentadorias rurais, um benefício previdenciário também sem contribuição, apenas 2% dos desembolsos vão para os mais pobres.
O apoio aos mais necessitados, portanto, não é uma questão que demanda mais recursos, mas sim de uma melhor alocação do que já existe. A sugestão do Banco Mundial é fundir o Bolsa Família com aposentadorias rurais, BPC e salário-família. Seria uma forma de aperfeiçoar o direcionamento desses benefícios a quem mais precisa, gerando economia fiscal sem elevar a pobreza.
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A sugestão dos economistas é politicamente indigesta. Durante a discussão malfadada da reforma da Previdência, tanto aposentadoria rural quanto o BPC foram retirados do debate. Uma saída seria colocar de novo os dois itens em uma futura reforma para um primeiro passo de revisão dos critérios de concessão. Nos dois casos, fraudes e ações judiciais levam benefícios a pessoas que não estão entre as mais necessitadas.
Já o salário-família não tem por que existir no atual formato. Ele se sobrepõe a outros benefícios, como o abono salarial, e não tem finalidade clara. Seus recursos seriam melhor utilizados se fossem uma “ponte” entre o Bolsa Família e empregos formais – reduzindo o desestímulo à busca de trabalho com carteira assinada entre beneficiários do Bolsa Família.
A abordagem pró-emprego poderia ser aplicada a outros benefícios sociais. O abono salarial poderia deixar de ser um subsídio sem foco e passar a incentivar a contratação de pessoas com mais dificuldade de encontrar empregos – seja pela baixa experiência ou pelo afastamento do mercado de trabalho. A lógica de associar programas de transferência a políticas de trabalho e empreendedorismo é um passo necessário para que as famílias beneficiadas tenham uma renda crescente e estável o suficiente para saíram da condição de pobreza.
Saúde
O Sistema Único de Saúde (SUS) é um segundo pilar de assistência social que precisa passar por uma revisão profunda. Criado após a Constituição de 1988, o SUS tem contradições internas que precisam ser superadas. O sistema conseguiu atacar alguns dos principais problemas de saúde do país – a mortalidade infantil caiu de 45,1 por mil em 1991 para 13,3 por mil em 2016; a expectativa de vida cresceu de 66,9 anos para 75,8 anos no mesmo período; o Brasil construiu um dos mais amplos programas de imunização do mundo – ao mesmo tempo em que persistem deficiências graves.
Um levantamento recente do Conselho Federal de Medicina mostrou que mais de 900 mil pessoas no país esperam por uma cirurgia eletiva – um dado que conta com informações de apenas 16 estados e dez capitais. São comuns ainda as cenas de hospitais abarrotados em algumas regiões do país e a falta de médicos especialistas para consultas.
Apesar desses problemas, o caminho para o Brasil passa por melhorar o SUS e não por sua substituição. É possível fazer avanços expressivos com melhora em gestão, busca de serviços na iniciativa privada e melhor distinção do papel dos planos de saúde. Um estudo do Banco Mundial aponta que é possível haver uma economia de 16,5% nos gastos do SUS, atualmente de quase R$ 300 bilhões por ano, com uma maior eficiência. Uma economia que poderia ser reinvestida no próprio sistema, apontado como subfinanciado por especialistas.
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O SUS se construiu em torno de um sistema complexo de repasses que não dá autonomia para gestores, nem exige de volta produtividade dos prestadores de serviço. O sistema também é politicamente fragmentado, com responsabilidades espalhadas entre municípios, estados e União. O modelo precisa se reorganizar para reduzir gastos ineficientes. Em uma frente, é preciso rever o papel de hospitais de pequeno porte, que têm baixa resolutividade. Além disso, é possível haver a regionalização do atendimento de média e alta complexidade, com a criação em larga de consórcios entre municípios, um modelo que já existe e é bem-sucedido.
A produtividade também pode crescer com a criação da remuneração variável de médicos e outros prestadores de serviços, além da busca de parcerias com a iniciativa privada. Atualmente, há uma limitação à contratação de organizações sociais de saúde (OSS) pelo risco de questionamento por parte de órgãos de controle de gastos e do Ministério Público, o que deveria ser superado com a regulação adequada desse tipo de contrato.
O papel dos planos de saúde precisa ficar mais claro. Atualmente, eles funcionam em parte como uma segunda porta de entrada para atendimentos de alta complexidade do SUS, como transplantes, o que os levou a acumular um débito bilionário com o sistema público. Uma sugestão de especialistas do Ipea expressa o documento “Desafios da Nação” é que todas as pessoas usem o Cartão Nacional de Saúde, interligando os sistemas público e privado. Além disso, os planos poderiam ter um foco mais eficiente na prevenção e atenção básica, nos moldes do que é feito pelo bem-sucedido Programa Saúde da Família.
Outras políticas
O SUS não é a única ponta na qual o novo governo terá de atuar para melhorar a saúde no Brasil. O país enfrenta problemas que indiretamente afetam a qualidade de vida, a longevidade e, em última análise, a capacidade produtiva da população. Temos uma das taxas de homicídios mais altas do mundo, de 28,9 mortes por 100 mil habitantes, segundo o Mapa da Violência do Ipea. Foram 59 mil pessoas assassinadas em 2015, em uma conta que não traz os feridos por armas de fogo. O Brasil também tem um trânsito violento, com 37 mil mortes em 2015.
A segurança pública deve ser vista como um problema que engloba a falta de presença do Estado em determinadas áreas e suas consequências sobre a saúde e a produtividade do país. Um cálculo do pesquisador do Ipea Daniel Cerqueira aponta que o custo da violência no Brasil é de 6% do PIB, incluindo gastos com segurança, saúde e o encurtamento de vidas produtivas.
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O enfrentamento dessa realidade depende de uma melhor articulação de esforços, aplicação de tecnologia e combate incessante à corrupção. A cidade americana de Chicago é um exemplo que pode ser inspirador para a realidade brasileira. A metrópole tem uma das taxas de homicídios mais altas dos Estados Unidos e enfrentou um pico de criminalidade em 2016. A reação envolveu agentes públicos, a Universidade de Chicago, polícias e a comunidade – um milionário natural da cidade doou US$ 10 milhões para a implantação de um projeto que usa inteligência artificial para antecipar possíveis episódios com armas de fogo.
O resultado da articulação foi uma queda no número de homicídios já caiu 15% em 2017 e outros 30% nos primeiros meses deste ano. A aposta da cidade foi construir um sistema que cruza dados de ocorrências com informações colhidas por câmeras e sensores que captam o som de tiros. Os policiais passaram a circular mais pelas áreas de maior risco, melhorando a interação com a comunidade. Houve redução na criminalidade sem o aumento da força policial, nem no número de prisões.
No Brasil, o problema é sem dúvida mais complexo. Na última década, São Paulo foi o único estado que conseguiu reduzir de forma consistente a taxa de homicídios e também serve como exemplo. Ali, houve uma política firme de retirada de armas de fogo de circulação, maior integração das polícias, investimento em treinamento. O estado também estruturou ferramentas de acompanhamento de ocorrências e melhorou a resolução das investigações, para reduzir a sensação de impunidade.
Os casos bem-sucedidos não são resultado de um fator único e encontraram ações que se encaixaram em suas realidades. Casos como o do Rio de Janeiro, onde houve uma melhora com as UPPs, poderiam ter avançado mais com a aplicação de outras estratégias – da limpeza da força policial feita em Nova York, ao sistema de monitoramento de Chicago. Como a violência é a realidade da maioria das grandes cidades, será necessária ao Brasil a construção de capacidades em vários lugares ao mesmo tempo, processo que pode ser liderado pela União. Não é, portanto, uma questão apenas de comprar mais armas e viaturas, mas de elevar a eficiência dos sistemas de segurança.
Contra as drogas
Uma linha complementar de atuação na área social que deveria ser abraçada pelo próximo governo é a retomada da formulação de uma estratégia nacional para se lidar com o tráfico de drogas, com ênfase na prevenção ao uso e apoio a usuários. O tráfico de drogas é um dos fatores mais associados aos crimes violentos no país, ao mesmo tempo em que é a principal causa de prisões em penitenciárias.
O último programa na área, o “Crack, é possível vencer”, prometia R$ 4 bilhões em prevenção, combate ao tráfico e tratamento. Só metade do dinheiro foi de fato aplicada, segundo levantamento da Confederação Nacional dos Municípios, e as iniciativas chegaram a apenas 100 cidades. O programa não entregou o número de leitos ou de consultórios de rua prometidos para tratamentos.
Os municípios precisam de apoio para construir ou ter acesso a uma rede de tratamento de dependentes, de preferência com a participação de familiares. Na esfera da segurança pública, a ideia de integrar a operação das polícias, já aprovada em lei, deve evoluir para a prática do estrangulamento das grandes redes de tráfico. Por último, o Brasil terá de debater de vez como lidar com a diferenciação entre usuários e traficantes, conectando o sistema de tratamento ao trabalho de repressão policial. Esse é o modelo de Portugal, que vem recebendo elogios por encaminhar de forma eficiente usuários abordados pela polícia para o tratamento da dependência.