O jornalismo dos próximos 100 anos
O futuro do jornalismo passará também por uma revalorização da cobertura local: frases polêmicas de deputados em Brasília têm menos impacto na vida das pessoas que a iluminação da praça que elas frequentam
Pedro Burgos*, especial para a Gazeta do Povo.
Na semana que sentei para escrever um artigo sobre o futuro do jornalismo na Gazeta, o texto que mais circulava entre os meus colegas de profissão dos EUA era um da tradicionalíssima revista New Yorker, com o título: “Será que o jornalismo tem futuro?”. A pergunta dá a dimensão do desafio da nossa profissão nesses tempos: antes de pensar em como o jornalismo estará no próximo século — ou mesmo em três meses — é preciso saber se a profissão como a conhecemos existirá, e qual o papel dela na sociedade.
Ou seja: o buraco é mais profundo. A sociedade reconhece que o jornalismo está em crise, e os sintomas são variados: há uma desconfiança crescente do público sobre a honestidade de jornalistas;
a queda brusca da receita publicitária e de classificados forçaram as redações a encolherem, muitas vezes diminuindo a qualidade; a importância do papel de intermediador da mídia diminuiu, com políticos e influenciadores conversado diretamente com seu público, via redes sociais; a concorrência com as “fake news”, ou com as notícias do “newsfeed” do Facebook, estão redefinindo o que é notícia. A lista de coisas com que jornalistas têm de se preocupar hoje é interminável.
“A crise do jornalismo hoje vem do fato de que pessoas em organizações de mídia passaram muito tempo sendo “produtores de conteúdo”, e não jornalistas. “Conteúdo”, como o nome sugere, é o recheio de algo. Empresas de mídia por muito tempo produziram um recheio amorfo para prender a atenção de leitores e vender anúncios”.
Para falar do futuro, então, é preciso entender como chegamos neste cenário. E para isso há de se reconhecer que a crise do jornalismo hoje vem do fato de que pessoas em organizações de mídia passaram muito tempo sendo “produtores de conteúdo”, e não jornalistas. “Conteúdo”, como o nome sugere, é o recheio de algo. Empresas de mídia por muito tempo produziram um recheio amorfo para prender a atenção de leitores e vender anúncios. Metas de produtividade envolveram (e envolvem) produzir dezenas ou centenas de conteúdos todo dia, que ninguém lembrava no dia seguinte. O valor disso, para anunciantes, público e sociedade, é indiscernível de um joguinho no celular ou vídeo no YouTube.
Até para uma questão de sobrevivência, o futuro do jornalismo deve passar por mais jornalismo. E isso pode significar, inclusive, produzir menos.
O matemático Nassim Taleb escreveu que “Ser inteligente, hoje, é ser seletivamente ignorante”. Em um mundo com uma avalanche infindável de informações, o jornalismo terá um papel cada vez maior de separar o sinal do ruído, ajudando a sociedade a focar nas coisas realmente importantes, ajudá-la a identificar assuntos importantes que ficaram longe da polêmica do dia no Instagram.
A outra tendência é que o trabalho jornalístico acontecerá e será entregue inclusive fora dos sites de jornais. Os veículos de mídia estarão, cada vez mais, em newsletters por e-mail, em boletins por
WhatsApp, em podcasts, ou mesmo no reply de um político, com a entrevista e checagem acontecendo diretamente no Twitter, por exemplo. Onde o público achar mais conveniente, ou fizer mais sentido para que a informação chegue onde precisa.
“Caberá ao jornalismo sanar as dúvidas, explicar temas complexos e entender melhor os anseios das pessoas. Para isso dar certo, caberá aos jornalistas ouvir a audiência e, acima de tudo, ser mais transparente — sobre o que acredita, as convicções, e sobre como conseguiu as informações”.
E para que o público veja valor no trabalho jornalístico, e se disponha a pagar, não basta fazer coisas aparentemente mais modernas e caras, como realidade virtual ou interatividade; a relação precisa mudar. O público participará mais, sugerindo, criticando, pedindo informações específicas. Caberá ao jornalismo sanar as dúvidas, explicar temas complexos e entender melhor os anseios das pessoas. Para isso dar certo, caberá aos jornalistas ouvir a audiência e, acima de tudo, ser mais transparente — sobre o que acredita, as convicções, e sobre como conseguiu as informações.
O futuro do jornalismo passará também por uma revalorização da cobertura local: frases polêmicas de deputados em Brasília têm menos impacto na vida das pessoas que a iluminação da praça que elas frequentam. Ao melhorar a ponte entre os anseios dos cidadãos e o poder público das suas cidades, os jornais poderão demonstrar melhor que são importantes, e que merecem a atenção — e, por que não, o dinheiro — dos seus leitores.
*É ICFJ Knight Fellow e professor de jornalismo no Insper.