O que leva Ana Amélia e Guilherme a apostar no jornalismo de qualidade?
Os irmãos Ana Amélia e Guilherme Cunha Pereira são a terceira geração de publishers à frente da centenária e digital Gazeta do Povo
Luan Galani, especial para a Gazeta do Povo.
Mal tinha pisado em Curitiba, ainda sob o encanto da terra dos Leprechauns depois de um novembro inteirinho de férias, e recebi uma mensagem do trabalho no WhattsApp. Tinha caído no meu colo, de bandeja, a oportunidade de tocar a edição especial de 100 anos da Gazeta do Povo. Depois do choque inevitável, começaram a borbulhar as ideias. A primeira era de desmistificar quem são Ana Amélia Filizola, 51, e Guilherme Cunha Pereira, 53, a terceira geração de publishers do jornal com os quais trombamos nos elevadores todos os dias. E tentar entender por que persistem com o jornalismo (meus boletos e eu agradecemos). Conseguimos convencer a dupla, que não gosta de flashes, a abrir o coração em uma série de conversas. Ganhei sinal verde e este espaço aqui para relatar minhas impressões.
A primeira grande descoberta é que não se trata apenas deles. Falam em nome de outros quatro membros da família, que aprovam e discutem cada passo ou investimento em reuniões mensais. Aparecem mais simplesmente porque estão no front como emissários da trupe familiar, formada por irmãos, filhos, sobrinhos e a matriarca Terezinha Döring Cunha Pereira, pintora e bailarina, que guarda uma semelhança incontestável com Catherine Deneuve, sensação do cinema francês. No diálogo com os irmãos, cheguei com o pé na porta, quase uma Oriana Fallaci em versão masculina contrariando todos os bons manuais de entrevista: “Por que vocês insistem no jornalismo?” A família não arreda o pé da crença de que conteúdos jornalísticos de qualidade são cruciais para a sociedade democrática, que ajudam a melhorar vidas.
Em uma comparação fajuta, mas que funciona: se do dia para a noite os supermercados parassem de dar o mesmo lucro, qual dono continuaria bancando a existência do negócio apenas por considerar a necessidade da sociedade? Ou qual proprietário de farmácia, padaria ou banco continuaria com as portas abertas para ajudar as pessoas? Depois do tsunami da chegada da internet, que derreteu as receitas publicitárias de todos os jornais e revistas ao redor do mundo e implodiu o modelo econômico tradicional, a Gazeta do Povo se viu na mesma encruzilhada. Mas não tenha dúvidas. O jornal mais tradicional do Paraná pensou nas pessoas. Você, caro leitor, como eu, não precisa concordar com todas as convicções da família, mas precisamos tirar o chapéu. Eles pensam no social. Mais que muitos sociólogos que conheço.
“Parece loucura, e acho que todos os publishers sérios do mundo são meio loucos. Mas somos mordidos por uma crença de que o que fazemos melhora a vida da população”, garante Ana Amélia, jornalista de formação e hoje diretora da unidade jornais do Grupo Paranaense de Comunicação (GRPCom). “Tudo é feito com o pé no chão, bem projetado e em consenso com a família. Temos a percepção de que estamos no caminho certo para tornar o negócio novamente sustentável”, avalia Guilherme, que preside o grupo. Os números não mentem: desde que optou pelo formato digital em 2017, o número de leitores da Gazeta no on-line cresceu 228%, com o ápice em outubro de 2018, quando a publicação se tornou o jornal mais lido do Brasil com 33,7 milhões de visitantes únicos, segundo o comScore MyMetrix.
A paixão latina que nutrem pelas questões públicas foi ensinada pelo pai, o advogado criminalista Francisco Cunha Pereira Filho, que nas décadas de 1950 e 1960 fazia com que toda a cidade parasse para ouvir suas arguições no Tribunal do Júri. Ou talvez encontre alguma explicação psicológica ainda mais antiga, já que são bisnetos do médico João Cândido, um dos heróis do Cerco da Lapa, de 1894, marco regional na defesa da República.
Foi com ele também que a dupla e a família aprenderam por contraste que os jornalistas precisam de independência para produzir o bom jornalismo. “Meu pai atuava de outra forma, interferia mesmo no que seria publicado. Era uma maneira legítima à época, de outro tempo. Mas quando assumimos, ficou muito claro que deveríamos fazer diferente”, diz Guilherme. E fizeram. Em
1998 convenceram o pai e trouxeram especialistas da Universidade de Navarra, da Espanha, uma das mais celebradas de todo o mundo pelos estudos de vanguarda em jornalismo, e promoveram mudanças em todo o perfil do jornal.
“Em 1998 convenceram o pai e trouxeram especialistas da Universidade de Navarra, da Espanha, uma das mais celebradas de todo o mundo pelos estudos de vanguarda em jornalismo, e promoveram mudanças em todo o perfil do jornal”.
Dr. Francisco e Dr. Lemanski, como ficaram comumente conhecidos os publishers, faleceram respectivamente em 2009 e 2010. Já imaginou o peso para as famílias de assumir um dos principais
jornais do Brasil, em plena crise do setor? A solução, por sorte, já estava encaminhada, com uma gestão ainda mais profissional. Em 2002, desenvolveram regras rígidas para que familiares pleiteassem um cargo de gestão. O mérito, e não o sangue, deveria falar por si.
Em 2007, por sua vez, deram outros passos no aprimoramento da “governança”. Por exemplo, institucionalizaram o conselho de administração. Mais recentemente, depois de um rearranjo societário e da adoção de um novo modelo de negócio digital, a Gazeta do Povo decidiu criar também um conselho consultivo com empresas de tecnologia e grandes nomes da comunicação e dos negócios. Hoje são as startups brasileiras Ebanx, Contabilizei e Cadê, que entraram recentemente para contribuir com a cultura digital da empresa. Hoje preparam sete acionistas da família, jovens de 13 a 29 anos, com cursos frequentes sobre gestão, negócios e comunicação, para que tenham condições plenas de também virem a opinar nos destinos do jornal, ainda que não necessariamente em cargos de gestão.
A crença inabalável no jornal e na família, que é a grande fortaleza por trás dos dois, também tem um fundo religioso. Certa vez Guilherme ganhou do pai um pequeno livro sobre a vida de São
Francisco de Assis. O efeito foi imediato e avassalador. Ali aconteceu seu “despertar profundo para a fé”, em suas próprias palavras. E por meio de um amigo, hoje diplomata brasileiro na China, entrou para a instituição católica Opus Dei, que prega que todos podem servir a Deus e à sociedade em suas vidas e atividades comuns no dia a dia.
Ana não dá o braço a torcer, mas é uma Katharine Graham brasileira – publisher do Washington Post imortalizada no cinema pela premiadíssima Meryl Streep. Foi graças a sua perspicácia que o
jornal, no início da década de 1990, inaugurou a seção de cultura batizada de Caderno G.
E fizeram tudo isso sem perder a leveza. O que inevitavelmente me lembra dos Super Gêmeos, sucesso retumbante do estúdio de animação Hanna-Barbera de 1980. Explico: os animadores criaram os gêmeos apenas para trazer leveza e humor para a franquia da Liga da Justiça. Mas foram justamente essas personagens que caíram na graça maior do público. Do mesmo jeito que Ana e Guilherme. São os rostos mais conhecidos da família, mas, como os Super Gêmeos, têm um belo time de super-heróis na retaguarda.