Um outro e mesmo Brasil retratado no 1º editorial da Gazeta do Povo

Em seu primeiro editorial em 1919, a Gazeta do Povo retratava um Brasil diferente, mas muito semelhante ao de hoje

, especial para a Gazeta do Povo.

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Quando a Gazeta do Povo começou a circular, no dia 3 de fevereiro de 1919, o Brasil era outro, mas era o mesmo. Tanto que os princípios do jornal, destacados em editorial escrito por Benjamin Lins e publicado na primeira página, tratam de problemas hoje ainda corriqueiros. O mundo, o país e a cidade mudaram muito, sem dúvida nenhuma, e mudaram para melhor num sem-número de aspectos. Algumas das mazelas, porém, permanecem.

Como já nos primeiros parágrafos o editorial faz uma defesa dos fatos, ou melhor, factos como matéria-prima do jornalismo e, por extensão, da análise jornalística, vamos a eles, a fim de que os leitores possam “todos e cada um, escolher sua directriz”.

A Curitiba daquele 1919 era uma cidade tranquila de pouco mais de 80 mil habitantes. A população do Brasil não chegava a 30 milhões de pessoas. O país (e a cidade) vivia o medo da epidemia de Gripe Espanhola, que em janeiro daquele ano vitimou o presidente Rodrigues Alves, dando início a uma disputa eleitoral acirrada entre Epitácio Pessoa e Ruy Barbosa. O Brasil era essencialmente rural e boa parte do seu território permanecia virgem. A Primeira Guerra Mundial tinha acabado há pouco e as grandes tragédias sócio-políticas do século 20 – nazi-fascismo, comunismo – ainda estavam por acontecer.

Apesar de tudo, era um momento de grande otimismo. O que se reflete no texto que marca a fundação do periódico. A sensação era a de que havia muito a ser feito não só para melhorar o país, mas sobretudo para construí-lo. Neste aspecto, o que sobra ao editorial é algo que talvez tenha faltado a todos aqueles que, na década de 1920, começaram a implementar políticas de engenharia social que, no Brasil, resultariam na ditadura de inspiração fascista de Getúlio Vargas. “Certo, muitas vezes atos prejudiciais são cometidos com as melhores das intenções. Mas a boa intenção não é motivo suficiente para se calar diante de um mal”.

Nesse trecho o editorial assume ares proféticos, porque a ideia de boas intenções que se transformam em atos prejudiciais é algo que permeou todo o século 20 e que infelizmente ainda permeia o século 21. Afinal, o que são as políticas identitárias, o incansável apelo igualitário dos populistas e até mesmo o discurso ecoxiita senão palavras cheias de boas intenções que acabam sempre
por resultar num mal maior? “O de que precisamos, o de que precisam as sociedades é de bons atos, de atos salutares”, diz o editorialista, concluindo a reflexão sobre o necessário espírito crítico da imprensa e seus leitores diante da sanha daqueles que tanto querem “melhorar” o mundo.

“O jornal, desde seu primeiro número, via com preocupação o que chamava de ‘os vícios do Estado’: alta carga tributária, nenhum retorno para o contribuinte, máquina pública inchada e ineficiente. Condições que, nas palavas do editorialista, ‘despertam tão sombrias cogitações sobre o futuro’.”

Em seguida, o texto entra no terreno pantanoso da economia. Terreno que, levando em conta a distância temporal, sofreu uma inundação de fatos, muitos deles cheios daquelas tais “boas intenções prejudiciais”, até se transformar num pântano sobre o qual não é fácil nem tampouco agradável caminhar. Quando o editorialista reclama, por exemplo, do peso dos impostos sobre a “economia particular”, o leitor contemporâneo há de rir aquele riso nervoso, talvez até entre lágrimas de revolta.

Porque, por mais calamitosa que fosse a situação das contas públicas e da economia como um todo em 1919, compará-la com o século 21 é dar margem para aquele discurso do “na época do Quinto (imposto de 20% cobrado por Portugal sobre as riquezas do Brasil) é que era bom”, tão comum nas redes sociais.

Recorramos, mais uma vez, aos fatos. Em 1919 o Brasil não tinha um Banco Central, capaz de controlar a emissão de moeda, o crédito e a taxa de juros. O padrão-ouro ainda predominava na economia. A crise de 1929 era um pesadelo distante. A despeito de ter uma economia dependente do café e da tendência inata do Estado brasileiro de se intrometer em tudo, estávamos muito distantes do Estado mastodôntico atual, bem como das muitas formas de intervenção estatal no que o editorialista chama de “economia particular”.

Falando assim, até parece que 1919 era um paraíso. Não era, evidentemente. O Brasil era agrário e primitivo. O analfabetismo atingia absurdos 70% da população. O sistema eleitoral conseguia
a proeza de ser ainda pior do que o atual (só homens alfabetizados com mais de 21 anos podiam votar; a votação não era secreta) e a política do café-com-leite consumia os escassos recursos públicos.

Daí porque o jornal, desde seu primeiro número, via com preocupação o que chamava de “os vícios do Estado”: alta carga tributária, nenhum retorno para o contribuinte, máquina pública inchada e ineficiente. Condições que, nas palavras do editorialista, “despertam tão sombrias cogitações sobre o futuro”.

“O que parece tão-somente uma conclamação fabril, algo como um “mãos à obra, pessoal!”, adquire, em tempos de redes sociais, um tom quase espiritual para que aqueles que têm o dom da palavra e o privilégio dos fatos não se rendam jamais ao enfado, ao cinismo e à vaidade. E que sobretudo jamais se curvem à enganosa fugacidade do tempo”.

Por fim, e fiel ao estilo clamoroso da época, Benjamin Lins exorta todos os que trabalham na nascitura Gazeta do Povo a “formarem o ânimo para os golpes da adversidade”. O que parece tão-somente uma conclamação fabril, algo como um “mãos à obra, pessoal!”, adquire, em tempos de redes sociais, um tom quase espiritual para que aqueles que têm o dom da palavra e o privilégio dos fatos não se rendam jamais ao enfado, ao cinismo e à vaidade. E que sobretudo jamais se curvem à enganosa fugacidade do tempo.

Porque o Brasil de 2019 é um e é esse que está aí, bem diferente do sonhado por Benjamin Lins, cheio de conflitos e com os cidadãos atados pelo Estado. Mas o de 2119 pode muito bem ser outro.