Guerra do Paraguai
Feridas abertas da Guerra do Paraguai
Reportagem: Diego Antonelli.
Fotos: Marcelo Andrade.
Parte 1:
Cento e cinquenta anos depois, a Guerra do Paraguai ainda é uma ferida aberta de cicatrização lenta. Os rancores da batalha mais sangrenta da América do Sul, que matou cerca de 270 mil paraguaios e 100 mil aliados, persistem até hoje. Um dos conflitos não resolvidos está ligado às divergentes versões de paraguaios e brasileiros para explicar as causas do confronto. Do outro lado da trincheira, estão os embates diplomáticos sobre a não devolução dos troféus de uma guerra iniciada em 1864 e que se estendeu até 1870.
O exemplo mais simbólico dessa história é o canhão “El Cristiano” (O Cristão), que está no Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro. Na década de 1980, o Brasil chegou a devolver alguns objetos da guerra, como uma espada usada pelo então presidente paraguaio Solano López e documentos confiscados durante o conflito. Mas não o canhão de 12 toneladas. E isso ainda incomoda.
Como faz parte do patrimônio histórico brasileiro, o canhão teria de passar por um processo de “destombamento”. Retirado da Fortaleza de Humaitá, o armamento ganhou esse nome por ter sido construído a partir de metal fundido de sinos de igrejas de Assunção. Em contrapartida, o país vizinho ainda tem o navio brasileiro Anhabahy exposto como troféu na cidade de Vapor Cué.
“Como um pedaço de ferro pode ser maior que as relações diplomáticas entre os dois países? Uma troca fortaleceria o Mercosul. Como confiar na base da desconfiança?”, indaga o pesquisador Eduardo Nakayama, membro da Academia Paraguaia de História. O historiador Ricardo Salles, por sua vez, afirma que poucos países devolvem troféus de guerra. “Mas acho que isso deveria ser feito. É uma reivindicação justa”, afirma.
Para Nakayama, o gesto simbólico de devolver o canhão poderia intensificar as negociações políticas e econômicas entre Brasil e Paraguai, selando uma cooperação mais confiável em todo o Mercosul. Além disso, o professor da Universidad Nacional de Asunción Herib Caballero acredita que o gesto de devolver o canhão ajudaria a encerrar definitivamente o conflito, “cuja recordação é sinônimo de dor e desesperança na memória coletiva dos paraguaios”. Ainda não há uma definição se algum dos governos irá ceder a essa batalha que já avançou para o século 21. O Itamaraty afirma que não há negociação em curso sobre o assunto.
Visões
Outro “conflito” está arraigado nos livros de História. Versões antagônicas para explicar os motivos da guerra foram disseminadas ao longo de um século e meio. Basicamente, há quem acredite que tudo começou devido ao imperialismo da Inglaterra, que queria impedir que um Paraguai autossuficiente prosperasse no Cone Sul sem os produtos industrializados ingleses. Do outro, os que apontam que os atritos começaram por causa da consolidação das fronteiras nacionais e, principalmente, pela hegemonia no Rio da Prata.
Quem defende a primeira versão afirma que o Paraguai era um país em avanço econômico que colocaria em perigo as relações inglesas com os demais países da América do Sul. O historiador do Museu Militar de Assunção, Stanislau Diego Esquivel, diz que o país já tinha fundições de ferro e ferrovias. “O governo britânico queria destruir e desmantelar o Paraguai antes que virasse uma potência. Por isso financiaram os aliados. Era um interesse econômico.”
Porém, essa versão foi revisada inclusive por historiadores paraguaios contemporâneos. Para Caballero, o conflito teve muitas causas. “Havia problemas de limites e as disputas políticas internas do Uruguai. A Inglaterra não participou como Estado. O que havia eram bancos que emprestaram dinheiro ao Brasil.” Ele acrescenta que não é possível cravar que o Paraguai era uma potência regional.
O historiador Francisco Doratioto, da Universidade de Brasília, e autor de Maldita Guerra, ressalta que as razões do conflito foram distorcidas durante anos. “O Paraguai não era uma potência econômica como se propagou. Havia ferrovia, telégrafo e fundição de ferro, que no Brasil já tinha desde o século 18. A guerra está inserida em um contexto histórico regional.”
Interpretação
Nas ruas de Assunção, capital paraguaia, é perceptível que pelo menos parte da população ainda tende a culpar a Inglaterra pela guerra e a crer que o Paraguai era uma potência regional à época: uma visão amarrada com a historiografia mais antiga e amplamente difundida no país durante anos.
Na mesma praça em que estão a estátua de Solano López e dois canhões usados na guerra, a dona de casa Marina Rotela (foto), 51 anos, natural de Assunção, é categórica ao afirmar que o país estava em progresso econômico e que havia chances de ele ser uma potência nos dias de hoje. “Seríamos um país melhor economicamente, sem dúvida”, diz.
Já o auxiliar de produção Julio Rojas, 38 anos, credita a guerra aos supostos interesses econômicos dos ingleses. “O Paraguai estava em um grande progresso e se não tivesse a guerra poderia ser uma Suíça da América do Sul.”
Tudo começou no Uruguai com a deflagração de uma guerra civil iniciada em abril de 1863 em que os colorados lutavam pela derrubada do governo dos blancos, eleito em 1860.
Brasil e Argentina
O Brasil estava interessado na abertura do Rio Paraguai à livre navegação e preocupado com os limites fronteiriços com a província do Mato Grosso. Havia uma disputa territorial entre o Império Brasileiro e o Paraguai nessa região, que remonta a 1856, quando fora firmado um tratado entre os dois governos estabelecendo um prazo de seis anos para se definir o limite entre os países. Passou o prazo e nada foi feito. Também havia um problema de fronteira entre o Paraguai e a Argentina, na região de Misiones e no Chaco.
Nova política
Ao assumir o poder em 1862, Solano López queria que seu país fosse protagonista na América do Sul. Para isso, ele costurou alianças com o general Urquiza, opositor do governo de Bartolomeu Mitre em Buenos Aires, e com o governo blanco do Uruguai. Segundo o historiador Francisco Doratioto, o Paraguai também buscava acesso ao mercado internacional através do Porto de Montevidéu.
Vizinhos unidos
Argentina e Brasil estavam juntos apoiando os colorados uruguaios. O presidente argentino tomou essa decisão porque os blancos simbolizavam o risco de uma oposição federalista em uma República Argentina recém-unificada.
Pretexto fraco
Doratioto conta que cerca de 40 mil brasileiros moravam no Uruguai, onde transportavam gado com o uso de escravos para o lado brasileiro. Nessa época, os uruguaios já não conviviam com a escravidão. “Antes, esses brasileiros tinham apoio dos colorados e usavam a região como se fosse extensão do Brasil. Os blancos tentaram pôr um fim a isso.” Esses estancieiros rio-grandenses foram até o Império alegar que cabeças de gado eram roubadas e brasileiros eram assassinados no Uruguai. “Mas é um pretexto que não se sustenta”, observa Doratioto. O governo imperial apoiava esses interesses privados, pois a região era estratégica para manter sua preeminência política.
Invasão
Os blancos uruguaios, apoiados pelo Paraguai, resistiram às pressões do Brasil para indenizar as supostas perdas dos brasileiros. Apoiando os colorados, as tropas imperiais invadiram o Uruguai em outubro de 1864. No dia 12 de novembro, Solano López, que já havia advertido o Brasil de que qualquer invasão ao Uruguai significaria guerra, ordenou capturar um navio brasileiro que saía de Assunção para Corumbá, levando o presidente de Mato Grosso a bordo. No dia 13 de dezembro, López declarou guerra ao Brasil e invadiu a província do Mato Grosso.