Acidentes de Trabalho no Brasil

O Brasil nas mãos de terceiros

Reportagem: Mauri Konig.
Parte 3:

Enquanto o Congresso Nacional vota o projeto de lei que autoriza a terceirização em toda a cadeia produtiva de uma empresa, a subcontratação de mão de obra já atinge um em cada quatro trabalhadores no Brasil. A conclusão consta de um estudo realizado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) com apoio do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) dando visibilidade a uma realidade pouco aparente nas estatísticas oficiais.

Com dados de sindicatos de todo o país, o estudo mostra que o mercado formal de trabalho era formado por 26,8% de terceirizados em 2013, ano da última atualização dos dados. Dos 47,4 milhões de trabalhadores formais da base de pesquisa, 34,7 milhões estavam em setores contratantes e 12,7 milhões em setores terceirizados. Se depender do empresariado, essa participação deve aumentar.

Sob pressão do setor empresarial, a Câmara dos Deputados aprovou dia 22 de abril os destaques finais do Projeto de Lei 4330/04, autorizando a terceirização. Se também passar no Senado, o projeto tende a ser vetado pela presidente Dilma Roussef. Em meio à discussão, a CUT e o Dieese trazem novas revelações. Conforme o estudo, oito em cada dez acidentes de trabalho no país acontecem com terceirizados, que respondem ainda por quatro de cada cinco mortes nessas circunstâncias.

A terceirização da mão de obra em muitas atividades econômicas aumenta os riscos de acidentes de trabalho. A procuradora do Trabalho Ana Lúcia Barranco avalia os impactos negativos também para o setor público, diante dos riscos de aumento da corrupção.

Alguns números retratam essa relação. Pelo levantamento, entre 2005 e 2012 a mão de obra terceirizada cresceu 2,3 vezes na Petrobras e o índice de acidentes de trabalho aumentou 12,9 vezes. No período, 14 contratados da estatal morreram enquanto trabalhavam, número que sobe para 85 entre os terceirizados. Na Klabin, onde o estudo concluiu que 37,5% dos trabalhadores são subcontratados, a taxa de acidentes é de 3,32 entre os trabalhadores terceiros e 2,79 entre os diretos.

O estudo Dieese/CUT conclui que ao terceirizar as empresas contratantes transferem para empresas menores a responsabilidade pelos riscos do seu processo de trabalho. Isto é, terceiriza os riscos inerentes às suas atividades para empresas que nem sempre têm condições tecnológicas e econômicas para gerenciá-los. Além disso, os terceirizados ocupam os postos de trabalho mais precários e arriscados, em setores onde adoecem e morrem lentamente em acidentes laborais.

O critério de menor preço nas licitações aprofunda a precarização porque em geral se obtém esse ganho financeiro à custa da negligência na segurança do trabalhador e da intensificação do trabalho – jornada maior, ritmo mais acelerado, metas a cumprir. Isso decorre dos prazos contratuais estabelecidos entre a empresa principal e as terceirizadas, prática comum em quase todos os segmentos produtivos.

Terceirizado trabalha mais e ganha menos

Os indicadores de renda, jornada de trabalho e tempo de emprego revelam a precarização do trabalho como estratégia de aumentar os lucros via terceirização. Conforme o estudo, em dezembro de 2013 os terceirizados ganhavam, em média, 24,7% menos, índice um pouco melhor do que em 2010, quando a diferença foi de 27%. A pesquisa demonstra uma concentração dos terceirizados nas faixas salariais mais baixas, de até quatro salários mínimos.

Os terceirizados também tem uma jornada de trabalho de três horas a mais por semana, sem considerar horas extras ou banco de horas. O estudo do Dieese conclui ainda que se a jornada dos terceirizados fosse igual à dos contratados diretamente, seriam criadas 882.959 novas vagas de trabalho, novamente, sem considerar a hora extra, banco de horas e o ritmo de trabalho que, como relatado pelos dirigentes sindicais, são maiores entre os terceirizados.

O tempo de emprego revela uma diferença ainda maior entre trabalhadores diretos e terceirizados. Se para os diretos a permanência média no trabalho é de 5,8 anos, para os terceiros é de 2,7 anos. Disso decorre a alta rotatividade dos terceirizados – 64,4% contra 33% dos diretamente contratados. Isso traz consequências para o trabalhador, que não consegue organizar a sua vida, e para as finanças do país, pois a alta rotatividade aumenta os custos com o seguro desemprego.

O documento conclui que a relação de precarização aumenta os custos para a sociedade, traz perda da qualidade de serviços e produtos, agressões ambientais a comunidades vizinhas, empobrecimento dos trabalhadores, concentração de renda, monetização da vida humana, atuação estatal como fomentador da precarização das relações de trabalho, fraudes em licitações, evasão fiscal, focos de corrupção, aumento das demandas trabalhistas e previdenciárias.

Ainda conforme o estudo, em geral as empresas terceirizadas empregam as populações mais vulneráveis do mercado de trabalho: mulheres, negros, jovens, imigrantes. É um trabalho precário voltado a pessoas que, por falta de opção, se submetem a empregos cujo objetivo é atender às necessidades das grandes empresas.

O ministério contra os acidentes

O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) lançou em março a Estratégia Nacional para Redução de Acidentes do Trabalho, buscando ampliar as ações para redução dos acidentes e doenças de trabalho no Brasil. Dos quatro eixos da estratégia, dois estão ligados à fiscalização de segurança e saúde e intensificação da fiscalização dos acidentes de trabalho e dois estão ligados à mobilização da sociedade pela prevenção de acidentes de trabalho.

O objetivo é prevenir os acidentes e a consequente redução dos gastos do INSS. O ministério tem desenvolvido ações de segurança e saúde no trabalho, em especial por meio dos auditores fiscais do trabalho. Entre 1996 e 2014, foram desenvolvidas 2,7 milhões de ações fiscais em segurança e saúde no trabalho.

Contudo, o contingente de auditores fiscais do trabalho é pequeno. Ao todo, são 2.622 em todo o país, para dar conta da fiscalização do cumprimento das leis trabalhistas e de segurança e saúde do trabalho, além do combate ao trabalho escravo e infantil, no campo e nas cidades. Desses, só 345 auditores fiscais são especializados em segurança e saúde do trabalho e 886 atuam em áreas multidisciplinares.

Em muitos casos, o Ministério Público do Trabalho tem tido sucesso nas autuações graças às ações dos auditores fiscais do Ministério do Trabalho. Só no Paraná, os auditores interditaram 228 empresas no ano passado e, neste ano, já autuaram 199 até esta segunda-feira (6) por irregularidades na prevenção a acidentes laborais. “Nossa missão é investigar as causas dos acidentes para evitar a repetição”, resume o chefe da Seção de Inspeção do Trabalho da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, Elias Martins. Essa investigação também ajuda a embasar as ações regressivas da Advocacia Geral da União, quando fica comprovada a negligência da empresa no caso do acidente.

Mercado informal exclui 14 milhões da Previdência

Setenta milhões de pessoas contribuem pelo menos uma vez ao ano para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Desses, 52 milhões são contribuintes assíduos, com carteira assinada. Mas além desses, o Brasil tem outros 14 milhões de trabalhadores sem carteira assinada e sem nenhum tipo de cobertura da Previdência, excluídos de direitos básicos. Eles não estão segurados e não figuram, por exemplo, nas estatísticas dos acidentes de trabalho.

Quem não contribui com a Previdência Social não é atendido por ela no caso de acidente no trabalho. Embora não estejam nas estatísticas do INSS, esses trabalhadores fazem parte da população economicamente ativa do país e incrementam o mercado informal que, por sua vez, contribui para outras estatísticas superlativas, estas na categoria das atividades subterrâneas.

As atividades econômicas não reportadas ao governo movimentaram R$ 830 bilhões em 2014, ou 16,2% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, conforme o Índice de Economia Subterrânea produzido pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) e pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Ibre). Além do mercado informal, o indicador calcula tudo aquilo que é movimentado no país mesmo por empresas formais, mas não é informado oficialmente ao governo.

Assim, no caso dos acidentes de trabalho é preciso considerar a proporção da população economicamente ativa de cada estado, pondera a procuradora do Trabalho Ana Lucia Barranco, coordenadora do Fórum de Proteção ao Meio Ambiente de Trabalho do Estado do Paraná (FPMAT-PR). “Pode acontecer ainda de um estado notificar mais acidentes devido à maior capacitação dos profissionais de saúde, o que não significa necessariamente que ele tenha mais acidentes”, diz.

Também não estão nessa conta uma parte dos trabalhadores mortos e inválidos atendidos pelos fundos de pensão de municípios, estados ou empresas estatais ou privadas. São as entidades fechadas de previdência complementar, ou EFPC. Há 317 desses fundos no país, com 2,5 milhões de participantes ativos, 3,9 milhões de dependentes e 736 mil aposentados ou pensionistas. Parte desse público pode aparecer tanto entre os beneficiários das EFPCs quanto do INSS.

Informalidade sonega R$ 80 bilhões

O Brasil tem 50 milhões de pessoas no mercado formal de trabalho. Mas há outros 14 milhões de trabalhadores na informalidade, o que representa uma sonegação de R$ 80 bilhões por ano à Previdência e ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A sonegação média do FGTS pelas empresas é de 7% ao ano, ou R$ 7,3 bilhões se levado em consideração que a arrecadação em 2014 foi de R$ 104,5 bilhões.

O ministério intensificou as fiscalizações para evitar que empresas mantenham trabalhadores na ilegalidade e soneguem o FGTS. Entre 2010 e 2014, as fiscalizações ajudaram a recolher mais de R$ 2,6 bilhões para o FGTS. A meta da pasta é garantir que o combate a essas irregularidades se revertam em crescimento das receitas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), do FGTS e da Previdência Social, chegando aos R$ 5,2 bilhões até o final deste ano.

Outra medida do MTE para coibir a sonegação ao FGTS vai ser utilizar o programa de fiscalização eletrônica para notificar as empresas devedoras. Dessa maneira elas poderão regularizar a situação. A pasta vai capacitar 1,5 mil auditores fiscais do trabalho para aprender a usar a ferramenta. A meta da pasta é resgatar R$ 2,6 bilhões para o Fundo até o fim deste ano.

A superação do iatista Lars Grael e do maestro João Carlos

O iatista Lars Grael e o maestro João Carlos Martins são dois dos casos mais emblemáticos de brasileiros que se superaram depois de serem vítimas de acidentes de trabalho. Lars Grael participava de uma regata em Vitória (ES), em 1988, quando teve a perna direita decepada pela hélice de uma lancha que invadiu a área de competição, pilotada pelo empresário Carlos Guilherme de Abreu e Lima. O iatista voltou a competir e, em 2015, conquistou pela sexta vez o campeonato brasileiro na classe Star.

Laudo da polícia concluiu que Carlos Guilherme estava embriagado quando atropelou Lars. Ele negou e disse não ter visto o barco do medalhista olímpico, ganhador de duas medalhas de bronze olímpicas em Seul (1988) e Atlanta (1996). No mesmo ano do acidente, Lars foi convidado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a ocupar o cargo de secretário nacional de Esportes. Ele também foi secretário estadual da Juventude, Esporte e Lazer no estado de São Paulo. De volta à vela, voltou a competir e a ganhar.

O maestro João Carlos Martins, de 75 anos, um dos maiores pianistas do mundo, enfrentou durante 11 anos o desafio diário de recuperar os movimentos das mãos. Ele teve uma sucessão de contratempos e passou por 22 cirurgias para se recuperar de doenças que atingiram os nervos das mãos. Em 1965, queda perfurou o braço e atrofioutrês dedos. Voltou aos palcos após um ano, mas desenvolveu distúrbio osteomusculares relacionados ao trabalho (Dort). Foi fazendo adaptações para continuar tocando.

Em 1995, foi golpeado na cabeça com uma barra de ferro num assalto na Bulgária. Teve de fazer trabalhos de reprogramação cerebral para movimentar a mão direita. Voltou a tocar com as duas mãos, mas novos problemas no braço direito e também na fala o fizeram se submeter a uma nova cirurgia. Foi quando gravou seu último álbum com as duas mãos.

Mais tarde, uma doença chamada contratura de Dupuytren tirou os movimentos da mão esquerda.

Incapaz de segurar a batuta ou virar as páginas das partituras dos concertos, o maestro memorizou nota por nota, até ser impedido de reger por causa da distonia no braço esquerdo, que produz movimentos involuntários. Em 2012, se submeteu a uma cirurgia para implantar dois eletrodos do cérebro e recuperar os movimentos da mão esquerda. A distonia estava avançada, atingindo todo o braço e ele não conseguir abrir a mão havia 11 anos. O maestro voltou a tocar piano em 2013.

Um arroto foi a gota d’água

Íria Mara de Marco Silva tem 51 anos. Graduada e pós-graduada, foi professora por 30 anos. Começou em escola particular e terminou os últimos 14 anos na escola pública. Em 2010, foi aposentada por invalidez ao ser diagnosticada com a síndrome de burnout, ou síndrome do esgotamento profissional. A gota d’água foi algo que, a despeito da grosseria, tem sido visto com certa naturalidade hoje em dia: o arroto de um aluno em sala de aula.

O arroto de um aluno em sala de aula foi o estopim de um longo processo de desgaste a que vinha sendo submetida à professora Íria Mara de Marco Silva. Depois do episódio, ela foi diagnosticada com a síndrome de burnout e hoje não consegue nem passar na frente de uma escola.

Desde 2009 Íria sabia que não estava bem. Mas imaginava que os sintomas indicavam a iminência de AVC ou um ataque cardíaco, por exemplo. Começou a ter insônia. Nas poucas horas em que dormia, tinha pesadelos recorrentes. Sonhava que estava sendo humilhada, prostrada de joelhos amarrando o tênis dos alunos adolescentes. Eles estavam enfileirados e ela não acabava nunca de amarrar os tênis.

Em outro sonho, ela se via morta fora do caixão, com amigos, alunos e professores ao redor. Ela era professora de música na disciplina de Artes e no sonho alguém sempre pedia que ela regesse o coral que mantinha com alunos e professores do colégio. O sonho era a manifestação de um desconforto que Íria vinha sentindo em relação aos alunos e às condições de trabalho.

A professora sentia que os alunos já não colaboravam mais. “Para começar, por falta de educação mesmo, por que os pais perderam a mão na educação dos filhos, porque eles deixaram até de pedir por favor”, diz. “Em segundo lugar, por terem interesses diversos e por achar que a escola é um clube, um lugar de conversar, de passear. E eu estava ali para atrapalhar a brincadeira deles”, diz.

Também pesava contra a dificuldade de trabalho para os professores, pela falta de condições e de estrutura. As salas são as mesmas de quando Íria era estudante. Mas quando ela estudava a sala tinha 30 alunos, hoje tem 45. Foi nesse contexto que a síndrome de burnout evoluiu.

A última aula foi no dia 27 de maio de 2010, uma quinta-feira. Íria tinha dado oito aulas naquele dia e se preparava para a nona, sobre Surrealismo. A nona aula era depois do recreio e os alunos costumavam chegar agitados. Ela conseguiu acalmar todo mundo e começou a aula. De repente, um aluno arrotou. E ainda falou em alto e bom som “ai, que delícia”.

“Aquilo foi uma gota dágua no oceano, mas pra mim foi muito”. Ela olhou para ele, olhou para a classe, que permaneceu em silêncio. “Eu não pude mais. Aquilo me desmoronou e eu quebrei em mil pedaços”. Hoje, Íria tem dificuldades até para passar na frente de uma escola.