Acidentes custaram R$ 70 bilhões em 7 anos
Reportagem: Mauri Konig.
Parte 2:
Dos 5 milhões de acidentes de trabalho ocorridos no Brasil entre 2007 e 2013, data da última atualização do anuário estatístico da Previdência Social, 45% acabaram em morte, em invalidez permanente ou afastamento temporário do emprego. Só nesse período, o desembolso do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) com indenizações aos acidentados foi de R$ 58 bilhões. Além da pensão por morte e invalidez, o INSS paga ainda o salário do segurado a partir do 16º dia de ausência no emprego.
Só em 2013, o INSS pagou R$367 milhões em benefícios por acidentes de trabalho. Uma parte se refere a afastamentos temporários do emprego, mas ano após ano a conta vai crescendo porque uma parte desses benefícios se destina a pensões por morte ou invalidez permanente. Numa conta atualizada para 2015, somente o custo gerado pelos acidentes entre trabalhadores com carteira assinada que são notificados e identificados nas estatísticas oficiais é estimado em R$ 70 bilhões.
Existem ainda outros custos que escapam às estatísticas oficiais. Esses custos vão além dos benefícios previdenciários, já que a eles se somam os gastos indiretos no Sistema Único de Saúde (SUS), com seguros de acidentes ou ações nos tribunais de Justiça, por exemplo. O SUS, que é universal, atende um grande número de pessoas que se acidentam e adoecem no mercado informal cujas despesas correm por conta do Ministério da Saúde e não do INSS. Nesse ponto, às estatísticas oficiais se incorporam estimativas as mais variadas.
Com 35 livros publicados nas áreas de Relações do Trabalho e Recursos Humanos, o economista José Pastore fez os cálculos há quatro anos e concluiu que o país perde R$ 71 bilhões por ano com os acidentes de trabalho. Para chegar a esse número, Pastore somou os custos para as empresas, para a Previdência Social e para a sociedade. Esse custo é subestimado por dois motivos: primeiro, porque se baseia apenas no mercado formal; segundo, porque esses gastos só cresceram desde os cálculos de Pastore.
As empresas têm dois tipos de custos: os segurados e os não segurados. O custo dos segurados é quanto a empresa gasta com seguro de acidentes de trabalho, com o tempo perdido, com despesas com os primeiros socorros, a perda de equipamentos e materiais, interrupção da produção, retreinamento de mão-de-obra, substituição de pessoal, pagamento de horas-extras, recuperação do empregado, salários pagos aos afastados, despesas administrativas, gastos com medicina e engenharia de reparação.
Os não segurados são menos visíveis e mais diluídos, salienta Pastore. O economista cita ainda outros custos não tão óbvios. Um deles é o adicional a quem trabalha em condições perigosas. Há, ainda, outros custos adicionais para as empresas, impostas pela atuação sindical ou presença crescente do Ministério Público do Trabalho e das demais autoridades do governo, inclusive por meio de sentenças condenatórias da Justiça do Trabalho.
Transporte rodoviário e construção civil, os setores mais letais
O transporte rodoviário de cargas rivaliza com a construção civil entre os setores mais letais para os trabalhadores. Grande parte dos acidentes se relaciona ao excesso de jornada de trabalho dos caminhoneiros e à falta regulamentação que limite o tempo ao volante e o intervalo mínimo de descanso. A falta de registro legal do vínculo de emprego geralmente contribui para que o motorista trabalhe mais para garantir o sustento e da família. Assim, os riscos se multiplicam num país com uma frota de 3,2 milhões de caminhões.
A construção civil é o quinto setor econômico em número de acidentes e o segundo que mais mata trabalhadores no Brasil. A participação do setor no total de acidentes fatais no país passou de 10%, em 2006, para os atuais 16% e hoje responde por 450 mortes todos os anos. Os dados consideram apenas os empregados formais vinculados aos CNAES (Classificação Nacional de Atividade Econômica) e os anuários estatísticos de acidentes de trabalho do INSS.
Pelos dados da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), o risco de um trabalhador morrer na construção civil é mais do que o dobro da média, considerando-se o número de operários nessa atividade em relação ao conjunto do mercado de trabalho. Em geral, a probabilidade de um empregado se incapacitar permanentemente nesse setor é seis vezes maior do que o conjunto de trabalhadores das demais atividades.
Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria da Construção e do Mobiliário (Contricon), Francisco Chagas Costa Mazinho, isso resulta de uma combinação de negligência das empresas e alta rotatividade e falta de capacitação dos trabalhadores. Muitos empregadores colocam o empregado na obra sem treinamento nem equipamento de proteção.
Empresas negligentes têm de ressarcir INSS
Empresas que contribuíram para a ocorrência de acidentes de trabalho por negligência ou por descumprir as normas de segurança estão sendo condenadas a devolver o valor pago pelo INSS como benefícios a trabalhadores vítimas de acidentes e seus familiares. Desde 1994, a Advocacia-Geral da União (AGU) ajuizou 3.940 ações regressivas acidentárias, metade delas só nos últimos cinco anos.
A Procuradoria-Geral Federal (PGF), órgão da AGU responsável pelas ações, tem obtido decisões favoráveis em 70% delas. Cerca de R$ 730 milhões de ressarcimento por benefícios como auxílio-invalidez e pensão por morte já foram pedidos na Justiça. Desde 2010, mais de R$ 10 milhões já foram devolvidos aos cofres do INSS como resultado da atuação da procuradoria.
Chefe da Divisão de Gerenciamento de Ações Regressivas e Execução Fiscal Trabalhista, o procurador federal Nícolas Francesco Calheiros vê muito mais do que o ressarcimento pecuniário. Para ele, quando a ação regressiva começa a pesar no bolso de quem teve culpa, surge o fator pedagógico. É quando as empresas começam a perceber os custos dos acidentes de trabalho e tendem a evitá-los obedecendo as normas de segurança.
A AGU tem procurado priorizar casos coletivos e de maior relevância. Processos como o da Frangosul, condenada neste ano pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4) a ressarcir em mais de R$ 1 milhão o INSS pelos gastos com benefícios previdenciários pagos a 111 trabalhadores que sofreram lesões e desenvolveram doenças enquanto trabalhavam na empresa.
AGU prova culpa de supermercado por doença ocupacional
Supermercados e hipermercados despontam nas taxas de acidentes de trabalho na categoria de comércio varejista. Foram 25 mil ocorrências no país só em 2013. A Advocacia Geral da União tem conseguido provar na Justiça a culpa dessas empresas em parte dos acidentes, como aconteceu com a rede Bompreço Supermercados do Nordeste Ltda., de Caruaru (PE).
A rede varejista foi condenada em maio a ressarcir o INSS pelo auxílio-doença pago a um trabalhador por problema de saúde ocupacional. Laudo técnico apresentado pela Procuradoria Seccional Federal, vinculado à AGU, confirma a negligência da empresa. A empresa foi condenada a pagar indenização de R$ 40 mil ao empregado e a ressarcir o INSS em R$ 7,2 mil.
Conforme perícia médica, a síndrome do manguito rotador sofrida pelo empregado foi desencadeada pela prestação de serviço à empresa, que consistia no descarrego de caminhões, abastecimento da loja e organização de mercadorias. A empresa não ofereceu programa de prevenção dos riscos ambientais ou qualquer medida de preservação da saúde e integridade física dos empregados.
A empresa recorreu alegando não poder ser condenada a ressarcir o INSS pelas despesas com benefício previdenciário porque os valores já são cobrados dos empregadores por meio do Seguro de Acidente do Trabalho (SAT). Mas, a 37ª Vara Federal de Pernambuco rejeitou os argumentos e condenou a empresa ao ressarcimento ao INSS e à indenização ao empregado.
Falta investir em prevenção
A falta de investimento em prevenção é o maior obstáculo para reduzir os acidentes de trabalho, avalia a procuradora do trabalho Ana Lucia Barranco, coordenadora do Fórum de Proteção ao Meio Ambiente de Trabalho do Paraná. Embora não seja barato investir em máquinas apropriadas e bons equipamentos de proteção, o custo compensa não só por motivos econômicos, mas sobretudo humanos. A reparação dos danos ao acidentado, diz a procuradora, é mais onerosa ao país do que o custo da prevenção.
Só no Paraná a Previdência concede por ano R$ 12 bilhões em benefícios acidentários. Para tentar reaver esses valores, em 2013 a Previdência ajuizou 536 ações referentes a acidentes de trabalho, com expectativa de arrecadações de R$ 114 milhões. Isso porque a Previdência tem de arcar com os custos de aposentadorias e afastamentos. A União tenta reaver esses valores por acreditar que a responsabilidade pelo acidente de trabalho é do empregador.
A legislação obriga a empresa a oferecer um meio ambiente de trabalho saudável e seguro. “Mas não basta o empregador fornecer os equipamentos de proteção, ele também precisa fiscalizar o uso. Se o empregado não usar, a responsabilidade é do empregador”, alerta a procuradora. Ana Lucia salienta que a legislação fornece ao empregador mecanismos para cobrar do empregado o uso do equipamento, como advertências, suspensão e até demissão por justa causa.
A cultura de não priorizar a prevenção no ambiente laboral é só a primeira das causas do alto índice de acidentes de trabalho. Ana Lucia elenca ainda a ineficiência do poder público ao criar políticas preventivas e fiscalizar os locais de trabalho e o uso de máquinas inadequadas, pois muitos fabricantes não cumprem as normas de segurança e orientações previstas em lei. Por fim, ela cita a precariedade das condições de trabalho, devido à flexibilização equivocada dos direitos trabalhistas.
Procuradora federal da Advocacia Geral da União, Alessandra Sgreccia entende a falta de investimento das empresas em segurança como uma forma dissimulada de violência que mata, mutila e adoece trabalhadores. E isso reduz a produtividade, arruína a vida de muitas famílias e produz custos sociais e financeiros no fim são injustamente suportados pela sociedade e pelo Estado brasileiro.
Acidentado e família têm direito a indenização do patrão
Toda vítima de acidente do trabalho ou de doença ocupacional tem o direito a uma indenização civil a ser paga pelo empregador, além do auxílio previdenciário do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O seguro contra acidente de trabalho previsto na Constituição não exclui a indenização civil quando o patrão incorrer em dolo ou culpa pelo acidente.
Para isso, será preciso comprovar que o empregador tinha a intenção de causar o acidente (dolo) ou que ele teve culpa por ação ou omissão. Em reiteradas decisões, o Tribunal Superior do Trabalho tem acatado a responsabilidade civil objetiva nas hipóteses de acidente do trabalho por entender que a empresa deve arcar com os riscos inerentes à sua atividade, ou seja, a responsabilidade em face do risco.
Os dependentes ainda podem cobrar danos emergentes, lucros cessantes e indenização por danos morais. Constatada a responsabilidade da empresa, ela terá de ressarcir aos herdeiros os danos emergentes, que se referem aos gastos imediatos, como despesas com tratamento médico ou hospitalar, remoção do corpo da vítima, despesas com funeral, jazigo.
Se responsabilizado pelo acidente, o empregador ainda deve pagar os lucros cessantes aos dependentes, considerando a perspectiva de vida do trabalhador morto teria não fosse o acidente. Supõe-se que a morte precoce do trabalhador reduz a renda dos dependentes. Assim, os lucros cessantes devem ser pagos pelo empregador na forma de pensão à família.
Cabe ainda aos familiares da vítima de acidente de trabalho a indenização por danos morais. Além de servir de compensação à família, essa penalidade tem um caráter pedagógico, para tentar evitar que a empresa volte a permitir situações que resultem em morte de trabalhadores.
Caminhoneiro morre no quarto acidente de trabalho
O caminhoneiro Alfredo Duck escapou três vezes da morte no exercício da profissão até acabar morrendo num acidente na Rodovia Régis Bittencourt, em 2002. A viúva e os dois filhos adolescentes lutaram durante anos na Justiça para provar a culpa da União na morte e comprovar o vínculo empregatício de Duck com a empresa, atestando assim que ele foi vítima de acidente de trabalho.
Por três vezes Duck teve sorte. O primeiro acidente aconteceu em 1995. Ele dirigia numa via rápida na saída da cidade de São Paulo quando foi fechado e, para não bater no carro à frente, jogou o caminhão na pista contrária, bateu num posto, foi arremessado para fora da cabine, caiu de costas, mas ainda assim conseguiu voltar para frear o veículo e evitar uma tragédia.
No segundo caso, em 1997, Duck foi baleado em Osasco (SP) numa tentativa de assalto quando fazia um frete. O terceiro aconteceu em 1998, na estrada de acesso à cidade da Lapa (PR). Por volta das 19 horas, ele tombou o caminhão ao desviar de uma carreta depois de ter sido fechado por um carro. A queda rompeu os pontos internos do abdome, feitos por causa do tiro de um ano antes na tentativa de assalto.
Mesmo com a hérnia decorrente do rompimento dos pontos no abdome, Duck passou a noite espantando saqueadores de carga. A empresa só mandou socorro no fim da manhã. Ele seguiu a rotina. Fazia a rota Porto Alegre-São Paulo e, no meio do caminho, passava um ou dois dias da semana com a família em Curitiba. Foi assim em grande parte dos 38 anos de estrada – quatro como ajudante e 34 como motorista.
Em 20 de fevereiro de 2002, Duck dirigia na Régis Bitencourt entre Juquitiba e Itapecirica da Serra (SP) quando uma curva acentuada o impediu de ver o congestionamento causado por uma colisão. Ele tentou desviar e bateu o furgão Mercedes-Benz na traseira de outro caminhão. Duck tinha 54 anos e morreu no local. A viúva, Tereza Zimmerman Sobrinha Duck, se viu sozinha com dois filhos, André Alfredo Duck, de 17 anos, e Ana Karla Duck, de 19 anos.
Duck era a única fonte de renda da família. Tereza entrou com ação na 3.ª Vara Federal de Curitiba alegando falha no serviço dos policiais rodoviários, que não advertiram os veículos na rodovia sobre o engarrafamento. A sentença de primeiro grau concluiu que a responsabilidade do acidente era tanto do motorista, que não conseguiu parar o caminhão, quanto dos policiais rodoviários, que não fizeram a sinalização adequada.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) condenou a União a pagar indenização no valor de R$ 75 mil por danos morais e R$ 725 mensais por danos materiais à família do motorista. A 3ª Turma do TRF4 manteve a decisão em primeira instância da 3ª Vara Federal de Curitiba, onde foi ingressada a ação.