Assista aos depoimentos dos militares brasileiros sobre os momentos que antecederam a chegada à Itália.
O Brasil entrou na guerra mais sangrenta da história no improviso. Ao decidir enviar tropas para a 2.ª Guerra Mundial, o governo brasileiro se deparou com a falta de estrutura do seu Exército. Com equipamentos ultrapassados, treinamento deficiente e roupas inadequadas para os 20 graus negativos do inverno europeu, os pracinhas brasileiros desembarcaram na Itália sem ter a noção do que era uma guerra. Metade do corpo militar enviado para combater as forças nazistas era composto por civis que nunca haviam pegado em armas.
Passados 70 anos, as lembranças de um dos maiores conflitos bélicos da história que alterou a geopolítica mundial ainda fervilham na memória dos sobreviventes. Situações impossíveis de serem esquecidas pelo paranaense Reynaldo Pontarolli, que durante quase oito meses esteve nos campos de batalha da 2.ª Guerra.
Com apenas 24 anos, ele regressou à terra natal no dia 6 de agosto de 1945, justamente a data em que a primeira bomba atômica foi arremessada pelos Estados Unidos na cidade japonesa de Hiroshima. Três dias depois, outra bomba atômica – a Fat Man – caiu sobre Nagasaki. Eram os últimos atos de uma batalha que insistia em continuar pelos lados do Pacífico. Na Europa, os conflitos cessaram em maio daquele ano. De setembro de 1939 a agosto de 1945, a 2.ª Guerra ceifou a vida de cerca de 55 milhões de pessoas.
Convocado em 1943, Pontarolli, assim como grande parte dos que se aventuraram pelo norte italiano, não tinha experiência militar. Ele era um dos quase 49% dos 25 mil pracinhas brasileiros que eram civis e enfrentariam as forças nazistas sem o menor preparo.
Ao final da guerra, o Brasil registou 443 mortos e cerca de 3 mil feridos. O Paraná contribuiu com 1.542 combatentes, dos quais 28 morreram. Segundo a doutora em História Cultural Carmen Rigoni, 2,5 mil brasileiros sofreram mutilações sérias e ficaram sob cuidados intensos em hospitais dos Estados Unidos.
Reynaldo Pontarolli, 94 anos, foi convocado para a 2.ª Guerra Mundial em 1943. Ele integrou o 3.º escalão e posteriormente foi incorporado ao 1.°. “Embarcamos para o Rio de Janeiro e ficamos um mês em instrução antes de ir para a guerra". Embarcou para a Itália no dia 23 de novembro de 1944. (Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo)Em 1944, o jovem Flávio Costa, natural de Rio Negro, foi convocado para a FEB. Quando já estava na Itália encontrou com o irmão. Até então Flávio não sabia da convocação dele. Ao invés de se sentir alegre ficou aflito, pois o irmão tinha temperamento difícil, advertiu-o: "Você se cuide rapaz, porque aqui a coisa pega!" (Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo)Dionéia Lessi, 83 anos, tinha apenas 12 anos quando o irmão Paulo embarcou para a 2.ª Guerra. Ele queria esconder da família e falou que seria transferido para prestar serviços militares no Rio Grande do Sul. Mas Dionéia ficou sabendo que Paulo iria para o campo de batalha e contou para toda a família – para o desespero da mãe. (Foto: Bruno Matos/Gazeta do Povo)Nery Corrêa do Prado, hoje com 91 anos, embarcou no 2.º escalão da FEB para a Itália. Ao todo, ele ficou oito meses na Itália. Durante os 15 dias que levou para chegar a Nápoles, Nery conta que participou de diversas instruções no próprio navio, que foi escoltado por forças militares durante boa parte do trajeto. (Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo)Senhorinha Chagas Borges, 93 anos, era casada com Alberto Weinhardt Borges, que faleceu em 2004 e lutou na 2.ª Guerra Mundial. Com saudades do esposo, ela escreveu um diário durante todo o período em que Alberto esteve no campo de batalha. O livro está guardado até os dias de hoje. “Saudades eram enormes”, conta. (Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo)Eronides Cruz, 93 anos, integrante da Força Aérea Brasileira (FAB), conta que os integrantes da FAB realizaram treinamentos na base americana no Panamá durante seis meses antes de irem para o campo de batalha. “A maioria não sabia falar uma palavra em inglês e nos vimos obrigados a falar a língua deles”, diverte-se. (Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo)Modesto Mariano Brito tinha 24 anos quando entrou no batalhão do serviço de saúde da FEB. O rapaz de Rio Branco do Sul a princípio seria responsável pelo transporte dos feridos nas padiolas, macas improvisadas usadas no front. Por fim não atuou como padioleiro, serviu no depósito de pessoal ajudando nas inspeções de saúde. (Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo)Raquel Regnier, 79 anos, filha do expedicionário Lauro Correia Regnier, tinha somente cinco quando seu pai embarcou para o front. Até hoje, Raquel tem uma mala deixada por seu pai, que faleceu aos 90 anos, com os apetrechos da época da guerra: lá estão o espelho, a caixa da lâmina de barbear, escova de dente e saboneteira. “Quando abro isso aqui, parece que sinto meu pai por perto”, conta. (Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo)Joaquim Mayer, 89 anos, conta que antes de se alistar como voluntário para participar como soldado brasileiro na 2.ª Guerra Mundial foi conversar com sua mãe. A resposta dela foi: “o destino é a gente que faz”. “Quando me apresentei fiquei muito contente”, lembra. (Foto: Bruno Matos/Gazeta do Povo)
O governo brasileiro declarou guerra em agosto de 1942 e a partida do primeiro navio de brasileiros para a Itália se deu apenas em 2 de julho de 1944. A demora em enviar tropas visava, justamente, a formação de um corpo militar.
Em julho de 1943, após uma convocação geral, três mil voluntários se apresentaram, mas metade foi reprovada em exames físicos e sanitários. A saída foi uma convocação compulsória. Grande parte dos ‘recrutados’ era oriunda das classes trabalhadoras, como operários, agricultores e pequenos comerciantes.
Despreparo
Familiares dos pracinhas brasileiros contam como era o contato e a ansiedade pelo retorno de seus combatentes.
O pouco tempo de preparo – cerca de um mês – foi só um dos problemas enfrentados pelos expedicionários antes de rumarem para a Itália. “Os brasileiros aprenderam de fato a guerrear na Europa, junto com os americanos”, confirma Carmen.
Para se ter uma ideia, o único batalhão da América do Sul que lutou contra as forças da Alemanha nazista teve apenas um espaço para a realização das instruções. Dos três centros de treinamento militar previstos, apenas o do Rio de Janeiro foi efetivado.
Exemplo deste período é o pracinha – termo usual à época – Joaquim Mayer, hoje com 89 anos, morador de Curitiba. “Não tinha instrução especial alguma para a guerra. Só a normal que o Exército brasileiro fazia na época”, relata. Natural do Rio Grande do Sul, Mayer conta que o Brasil não tinha sequer material específico para encarar uma guerra. “Fomos conhecer as armas na Itália”, completa.
O Exército brasileiro não atentou nem sequer para as temperaturas abaixo da marca dos 0ºC que os soldados iriam enfrentar no inverno europeu. Ao chegar no Velho Continente, os tecidos finos dos uniformes de brim tiveram que ser substituídos pelas roupas americanas, mais quentes e adaptadas para o conflito.
Intensivo
Os pracinhas ainda tiveram de passar por um treinamento intensivo de 15 a 20 dias com os norte-americanos para se adaptar ao novo armamento. “Os canhões de instrução aqui no Brasil eram da 1.ª Guerra. Quando chegamos na Itália, os americanos haviam mandado canhões novos. Manusear canhão era coisa complicada, existiam vários níveis e tivemos de nos adaptar”, relata o pracinha Nery Corrêa do Prado, 91 anos.
Ao chegar no porto de Nápoles, após 15 dias de viagem, Nery e os demais pracinhas pressentiram o que estava por vir. O porto se encontrava todo devastado, com diversas carcaças de embarcações abatidas. Tiveram de caminhar por cima dos destroços para chegar até a margem. Não havia mais dúvida: a “cobra ia fumar”.
Os antigos uniformes verdes dos expedicionários (foto) foram substituídos assim que os brasileiros chegaram na Itália. Eles não foram substituídos tão somente por ser semelhante ao do alemão. Mas sim, e principalmente, pelo modelo, inadequado para um frio de 20 graus negativos. (Foto: acervo Museu do Expedicionário; reprodução Aniele Nascimento/GP)Homens e mulheres de todas as regiões brasileiras compuseram o efetivo de mais de 25 mil combatentes da Força Expedicionária Brasileira (FEB). (Foto: acervo Museu do Expedicionário; reprodução Aniele Nascimento/GP)Os pracinhas chegavam até o Rio de Janeiro em trens. Na então capital do Brasil eles recebiam um breve treinamento antes de embarcarem para a Itália. (Foto: acervo Museu do Expedicionário)Trens transportavam as tropas dos batalhões do Exército até o porto do Rio de Janeiro para o embarque em navios norte-americanos. (Foto: acervo Museu do Expedicionário; reprodução Aniele Nascimento/GP)O navio norte-americano General Meigs partiu do Rio de Janeiro deixando para trás o Pão-de-Açúcar. A embarcação transportou o 3º, o 4º e o 5º escalões da FEB. (Foto: acervo Museu do Expedicionário; reprodução Hugo Harada/GP)O 2º Escalão da Força Expedicionária Brasileira foi transportado pelo navio norte-americano da foto. (Foto: acervo Museu do Expedicionário; reprodução Hugo Harada/GP)Nos porões das embarcações milhares de homens dormiam empilhados em beliches. Os pracinhas ainda hoje se recordam do abafamento das claustrofóbicas acomodações. (Foto: acervo Museu do Expedicionário; reprodução Hugo Harada/GP)No antigo álbum do expedicionário Lauro Correia Regnier o registro dele com os colegas no convés do navio. Na foto lemos "Depois da gororoba uma boa soneca". (Foto: álbum família Regnier; reprodução Brunno Covello/GP)Oficiais da Força Expedicionária Brasileira desembarcando no porto de Nápoles na Itália. (Foto: acervo Museu do Expedicionário; reprodução Aniele Nascimento/GP)Desembarque do 2º e do 3º Escalões da FEB na Itália. Os expedicionários vestem o antigo uniforme verde com o qual embarcaram no Brasil. (Foto: acervo Museu do Expedicionário; reprodução Hugo Harada/GP)
Sob pressão, Brasil aderiu à guerra
O Brasil só declarou guerra aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) três anos depois do início dos confrontos. Até então, declarava-se neutro, posto que o governo de Getúlio Vargas mantinha fortes ligações comerciais com a Alemanha. O torpedeamento de navios brasileiros somou-se à pressão norte-americana, que estava do lado dos Aliados (com França, Inglaterra e União Soviética).
De 1941 até 1943, 33 navios brasileiros afundaram decorrentes de ataques dos países do Eixo, motivando a população ir às ruas no Rio de Janeiro cobrando um posicionamento de Vargas. Estima-se que 971 brasileiros morreram em virtude desses ataques.
Durante todo esse período, o governo brasileiro sofreu fortes pressões dos Estados Unidos para permitir às tropas norte-americanas o uso de portos e aeroportos do Norte-Nordeste, considerados fundamentais para a defesa do continente.
De 1941 até 1943, 33 navios brasileiros afundaram decorrentes de ataques dos países do Eixo
Como barganha, o presidente Vargas aproveitou para obter dos Estados Unidos a promessa de reaparelhamento das Forças Armadas brasileiras e de construção de uma grande usina siderúrgica, a Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda. Até aí, ressalta a historiadora Carmen Rigoni, a FEB não tinha sido montada. Vargas, enfim, declarou guerra em agosto de 1942.
No início de março de 1943, Vargas aprovou proposta do ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, sugerindo a criação da força expedicionária. O próprio símbolo adotado pela FEB, um escudo com o desenho centralizado de uma cobra fumando cachimbo, surgiu como uma provocação aos que diziam ser mais fácil uma cobra fumar do que o país entrar na guerra.
O historiador Dennison de Oliveira, da UFPR, ressalta que o projeto de mandar as tropas para guerra é brasileiro. “Os Estados Unidos não queriam. Para eles, bastava o apoio formal. Isso reforçaria que os Estados Unidos lutariam pelas Américas”, revela.
Quando as tropas brasileiras desembarcaram na Europa, em junho de 1944, grande parte do Velho Continente estava ocupado pelas forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Nesse período, as Forças Aliadas (Estados Unidos, França e Inglaterra) já tinham ocupado parte da Itália. Nessa época, a França ainda estava ocupada por forças nazistas.
Senta a Pua
Cerca de 400 homens da Força Aérea Brasileira (FAB) chegaram à Itália para participar do “teatro da guerra”. Ao contrário dos integrantes da Força Expedicionária Brasileira, a preparação para o combate incluiu treinamentos fora do país. Os pilotos embarcavam para a Escola de Táticas Aéreas, em Orlando, nos Estados Unidos, enquanto o pessoal de terra — composto pelas equipes de mecânicos e especialistas em armas — embarcava para a base de Halbrook Field, no Panamá. Ao terminar o curso, os pilotos também seguiram para o Panamá. Durante os treinos, surgiu o grito de guerra “Senta a Pua!”, uma gíria da época que significava “mete bala”.