Reportagem: Felippe Aníbal Fotos: Albari Rosa Vídeos: Marcelo Andrade
O entra e sai no barraco de lona, em um terreno baldio do Parolin, na periferia de Curitiba, se estende ao longo do dia. Dentro, a penumbra é quebrada por chispas intermitentes que vêm dos isqueiros e dos cachimbos artesanais de usar crack. O cheiro impregnante do entorpecente parece tornar ainda menor o ambiente claustrofóbico, em que mais de dez pessoas chegam a se espremer, ombro a ombro, em um espaço de oito metros quadrados. De tempos em tempos, outros usuários chegam e as “pipadas” recomeçam.
O casebre funciona como um ponto constante de consumo de drogas – como se fossem pequenas cracolândias – que se multiplicam pelos bairros, a ponto de preocupar autoridades. A Gazeta do Povo passou quatro tardes em chamadas “tocas do crack”, onde pessoas que têm a própria vida consumida pelo vício queimam pedra atrás de pedra, como se fosse uma sina da qual não conseguem fugir.
“Aqui, é que nem rodoviária: [o movimento] é o tempo inteiro. Passa pra mais de 100, 120 pessoas por dia (...) O cara entra, dá uma bola (consome a droga), sai, depois volta de novo. O dia todo é cheio de gente”, define Roberto*, dono de um dos barracos. Desde 2002, ele chega a usar 30 pedras por dia. “O crack rouba sua alma e você não consegue parar.”
Em regra, as “tocas do crack” surgem para servir de teto. Mas, como seus moradores consomem a droga, a notícia corre logo, atraindo outros usuários. Estes não pagam “entrada”, mas sempre acabam deixando uma ou outra pedra aos donos do barraco. “Eu não cobro nada, não peço nada, mas o dono sempre é lembrado. Como se diz, a gente tem ‘anistia’. É quase lei”, explica Ricardo*.
Por detrás das baforadas, perfis vastos que escondem histórias pesadas. Boa parte dos frequentadores das “tocas” mora nas ruas ou cata materiais recicláveis para viver. O crack acaba lhes servindo como uma válvula de escape, uma fuga da realidade. “Eu vivo em função da próxima pedra. Quando acaba o crack, acaba o amor”, diz Leandro*, que há quatro anos não vê a família. “Eu sumi porque eles sofriam. Eu que escolhi esse caminho, quem tem de sofrer sou eu.”
Por dia, é 20, 25 pedras (...). Eu acordo de manhã, vou tomar café, tem que ter uma pedra. Vou almoçar, tem que ter uma pedra. Vou sair, tem que ter uma pedra.”
As pequenas cracolândias também reúnem pessoas que já pertenceram à classe média, mas decaíram por causa da droga. É o caso de Fernando*, de 42 anos, que era produtor de moda. Trabalhou para grifes como Dior, Zoomp e Forum. Era casado e morava em um apartamento amplo no Água Verde. Entrou em contato com o crack por meio de um vizinho, que, às escondidas, colocava pedras da droga em cigarros de maconha que eles compartilhavam. Perdeu tudo: de mulher à carreira.
“O crack é a besta. Ele te escraviza e você vive só por ele”, resume. “Meu sonho é acordar e pensar que foi um pesadelo. Mas, do jeito que estou, eu sequer escovo os dentes. Tenho nojo de mim, mas não consigo sair.”
Apetrechos
O crack é consumido de três diferentes formas. Para cada uma delas, um apetrecho:
Cachimbo
Geralmente, os cachimbos são artesanais, feitos de metal. Em uma das pontas, o usuário coloca cinzas de cigarro para ajudar a combustão. A pedra de crack é colocada sobre este resíduos e acendida.
Latas
O usuário faz pequenos furos na lata e coloca a pedra de crack sobre um punhado de cinzas. A fumaça é aspirada por esses orifícios. Consequências podem ser mais danosas, porque podem acelerar intoxicação pulmonar.
"Piper"
Tubo de metal de dimensões aproximadas de um cigarro. Em geral, o crack é colocada entre um pequeno chumaço de palha de aço, que vai impulsionar o processo de combustão da droga. A pedra é consumida em uma única “puxada”. Segundo os usuários, os efeitos são sentidos de forma mais imediata e intensa.
Vocabulário do crack
Local onde os usuários se reúnem para usar drogas.
Usuário que não precisa pagar pela droga, em determinadas situações. Os donos da "toca", em geral, são anistiados.
Vontade incontrolável de consumir droga; crise de abstinência.
Atividades a que os usuários recorrem para conseguir dinheiro. Podem ser lícitas ou não.
Pedir dinheiro; esmolar.
Consumir uma pedra de crack
Ato de consumir determinada droga. No caso do crack, pode ser uma pedra inteira ou não.
Quando a droga começa a fazer efeito. Ex: "A pedra bateu".
Ponto de venda de drogas.
esconder
Fonte: Redação. Infografia: Gazeta do Povo.
Assistência
Curitiba desloca Caps para perto de usuários
A pulverização das cenas de uso de droga em bairros da periferia de Curitiba chamou a atenção do Departamento de Políticas Sobre Drogas da prefeitura, que traçou uma estratégia para aproximar a assistência dos usuários. No fim do ano passado, um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD) foi deslocado do Jardim Social para a Cidade Industrial (CIC). Nos próximo meses, uma unidade deve ser transferida do Água Verde para o Parolin.
“[A CIC e o Parolin] são áreas que têm um cenário de uso maior. Os usuários tinham uma dificuldade de acessar o serviço porque ficava longe. Como a questão do acesso é muito importante, estamos levando essas unidades para mais perto”, diz o diretor do departamento, Marcelo Kimati.
Na primeira vez [que você usa], dá uma curtida legal. Depois, você quer sentir aquela potência de novo, vai aumentando a quantidade. Mas aquilo só te dá na primeira vez. O resto é vício, é uma pedra atrás da outra, mas a sensação é só na primeira.”
Desde o ano passado, o tema passou a ser tratado pela prefeitura definitivamente como uma questão de saúde pública. O departamento, que estava vinculado à Secretaria de Defesa Social, passou para a Secretaria de Saúde. Com isso, afirma o diretor, tem sido possível manter uma abordagem multidisciplinar sobre o problema. “A ideia foi tirar a questão somente do eixo da segurança, da repressão, e amplificar a lógica do cuidado, de que essas pessoas precisam de um suporte.”
Em média, 80% dos usuários que procuram a Caps-AD acaba passando por tratamento.
Por se tratar de um fenômeno dinâmico, não há um mapeamento sobre as pequenas cracolândias, o município mantem equipes integradas que buscam atrair usuários para a terapia mais adequada a cada perfil. No ano passado, 4.092 pessoas receberam tratamento em Curitiba. As unidades do Caps-AD registraram mais de 3,2 mil atendimentos iniciais e foram realizados 1,3 mil internamentos em hospitais psiquiátricos que mantêm convênio com o município.
“Em média, 80% de quem nos procura acaba passando por tratamento. Cada usuário tem um perfil. O importante é que a equipe consiga direcionar para o tratamento que faça mais sentido àquele usuário. Muitas vezes, ele começa e recomeça o tratamento várias vezes. A dependência é uma doença crônica e, por isso, há tantas recaídas”, pontua Luciana Savaris, diretora do Departamento de Saúde Mental de Curitiba.
Vício
Usuários estão “escravizados” pelo crack há mais de dez anos
O efeito é imediato: nem bem termina de puxar a fumaça do crack em uma única baforada, a cabeça de Johnson* começa a tremer continuamente, como se a droga lhe batesse diretamente no cérebro. O “barato” passa em poucos segundos, o que lhe dá ganas de consumir outra pedra. Há 12 anos, ele usa a droga continuamente até que o entorpecente acabe.
“[Quando fumo] eu sinto uma euforia. É ilusório, mas ajuda a esquecer dos problemas. O ruim é que depois que passa, os problemas continuam. Desde 2004, estou escravizado pelo crack”, diz.
Por causa da droga, acabou se afastando da família, perdeu o emprego em uma metalúrgica e viu os amigos desaparecerem. Por 12 vezes, esteve internado em clínicas de reabilitação, mas cedeu às recaídas. “Eu perdi tudo que uma pessoa pode perder. Minha família desistiu de mim e com razão. (...) Os tratamentos não deram certo, porque o crack é bem mais forte do que eu. Sozinho, eu não consigo.”
Eu devo ter parado quatro vezes, por [um período de] três, quatro, sete meses. Todo mundo que está ao seu redor fica feliz. Você ilude as pessoas e ilude você mesmo. Aí você volta a fazer escondido. Você sente vergonha de não conseguir parar.”
Usuários como ele desfizeram a tese inicial, segundo a qual o crack seria uma droga devastadora, que consumiria a pessoa em pouco tempo. A técnica do Observatório do Crack, Mariana Boff Barreto, destaca que as consequências da droga variam de organismo para organismo. Por isso, o Brasil tem hoje viciados com histórico de uso de mais de uma década de uso. “Como as reações não são as mesmas, os efeitos no longo prazo variam.”
Roberto*, por exemplo, fumou a primeira pedra em 1992, no festival de música Hollywood Rock. Considera que conseguiu se equilibrar até 2002, quando “perdeu o controle” e foi tragado pelo vício. Ficava três dias a fio usando droga. Vieram as dificuldades de cumprir horário, as brigas com a família e a perda do emprego. Saiu de casa e foi morar nas ruas.
“O crack faz você se sentir um estranho dentro da sua própria casa. Então, você vai se afastando aos poucos e, quando vê, está na rua. Outro dia vi uma foto minha, de quando eu não usava, e levei um susto: era outra pessoa.”
Os outros
“A sociedade trata a gente como bicho. Então, a gente vira bicho”
Roberto* anda pelas ruas como se estivesse marcado. Sabe que as pessoas o olham diferente por usar crack. Sente o preconceito de longe, o que afeta sua própria autoestima. “Quem usa crack é tratado como um lixo, um ser humano que não presta. A sociedade trata a gente como bicho. Então, a gente vira bicho.”
Na “toca do crack”, os frequentadores têm consciência de sua condição. Dizem se sentir marginalizados e que apenas “devolvem” aquilo que as pessoas lhe dão. “Todo mundo aqui já teve vez que, por causa do vício, fez coisa errada. Teve que manguear [pedir dinheiro], roubar... A sociedade tem que ver que, se ela fechar os olhos pra nós, tem esse custo”, aponta Johnson*.
Se eu não tinha dinheiro, pedia emprestado. Virava uma bola de neve tão grande e você acaba fazendo dívida com todo mundo. Aí, você rouba, vai manguear (pedir), faz coisa errada. Eu sempre procurei fazer com meu dinheiro, meu trabalho, mas já fiz bastante coisa errada.”
“Ninguém vê o que está por trás da nossa história. Mesmo nesse estado, eu ajudo quem eu posso. Tem um velho que eu cuido. Troco roupa, dou remédio e alimento. Se você parar pra ver, nós só temos um vício, como outras pessoas tem também.”
A visão que usuários têm de si converge com a análise do sociólogo Cezar Bueno, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e especialista em segurança e direitos humanos. Para ele, o combate à dependência química passa necessariamente por dois fatores: a humanização dos usuários e o deslocamento da atuação do Estado no sentido de oferecer políticas públicas que não os criminalizem.
“A sociedade os vê como indesejáveis e os próprios usuários internalizam esse pensamento. Não vamos superar este problema enquanto o poder público não oferecer uma política pública preventiva, não criminalizadora, que mude a perspectiva de uma forma global. Não se trata de uma questão de direito penal, mas de humanização e de saúde pública”, diz.
Cotidiano
A rua do crack
É em um sofá de três lugares, postado em uma calçada da Rua Luiz Gaspari, no Parolin, que parte dos frequentadores da via se reúne para consumir drogas. Os pequenos grupos de dependentes se sucedem: assim que um sai, outro ocupa o estofado. Ao longo da mesma rua, anteparos e barracas improvisadas também servem para encobrir o uso de crack.
Com movimento ininterrupto ao longo do dia, a rua já assumiu a dinâmica de uma pequena cracolândia. “Tem uns que moram aqui na rua mesmo. Só saem para conseguir alguma coisa pra comer ou para comprar pedra”, diz Humberto*, de 46 anos.
Meu sonho é trabalhar, ter uma família e dar um sustento digno pra eles (...). Eu acho que preciso de ajuda. As pessoas me ajudam, mas eu não tenho força pra sair disso. É mais forte do que eu.”
Como na quadra ocupada pelos usuários não há residências – apenas empresas –, os vizinhos não incomodam o vai e vem dos frequentadores. Alguns pequenos traficantes também circulam na rua. São usuários que fazem do comércio da droga uma forma de alimentar o próprio vício.
Entre os dependentes, muitas mulheres. Algumas se oferecem para programas. Vez ou outra, conseguem clientes e embarcam em carros que param na rua. “Cada um faz seu corre para conseguir dinheiro. Então, tem de tudo. Tem menina que, pra levantar um [dinheiro], faz [programas]”, conta Humberto.
Desespero
Com um punhado de pedras nas mãos, Hudson* treme ao conversar com a reportagem. Está na fissura para fumá-las. Mas, antes, conta com orgulho do dia em que pôs em prática os conhecimentos de bombeiro para salvar a vida de um jovem.
“O carro parou, abriu a porta e o playboy já caiu pra fora, engasgado. Eu deixei o cachimbo no chão e fui lá. Fiz respiração boca a boca. Puxei, veio aquela nojeira. O cara voltou a respirar. Nem me agradeceram. Eu virei as costas e voltei a fumar”, diz o ex-soldado do Corpo de Bombeiros. O vício o afastou do batalhão após oito anos de serviço. A rotina agora é perambular em busca da próxima pedra.
Alguns pequenos traficantes também circulam na rua. São usuários que fazem do comércio da droga uma forma de alimentar o próprio vício.
*Todos os nomes foram substituídos para proteger a identidade dos entrevistados.