Sexo, gênero e a origem das guerras culturais: uma história intelectual

Autor: Scott Yenor

Publicado em:

Atualizado em:

Ilustração: Osvalter Urbinati/Gazeta do Povo

Nota do Editor: Como o feminismo radical lançou as sementes de nosso momento transgênero? Em 2017, o professor Scott Yenor publicou um extenso ensaio para responder a essa pergunta, perpassando a história das ideias feministas do século XIX até hoje. Na ocasião, a Gazeta do Povo publicou uma síntese do ensaio, assinada pelo próprio Yenor. Agora, publicamos, pela primeira vez em português, o ensaio completo.

Como afirmamos em nossas convicções, a Gazeta do Povo acredita que os movimentos feministas devem ser reconhecidos pelas conquistas das mulheres consolidadas durante o século passado, como a sua inserção no mercado de trabalho, o exercício dos seus direitos políticos e o seu acesso ao ensino superior.

Ao mesmo tempo, entendemos que um feminismo que verdadeiramente deseje sublinhar a força da identidade feminina se contradiz quando cede à liquidez de uma teoria que já não reconhece a existência dessa mesma identidade, como é o caso da ideologia de gênero.

Resumo

Há muitos que hoje aceitam algo que apenas uma geração atrás teria parecido inconcebível: que o gênero é artificial, que é socialmente construído e pode ser escolhido livremente por todos os indivíduos. Essa noção – que o sexo biológico pode ser deliberadamente separado do gênero – teve origem nos argumentos de influentes feministas radicais que escreveram entre as décadas de 1950 e 1970. As premissas de suas teorias inauguraram o novo mundo do transgenerismo. A teoria que ontem era chocante tornou-se a normalidade aceita hoje, e há mais transformações por vir. Resta a ver, porém, se este novo mundo será capaz de fomentar o desenvolvimento humano.

Os tópicos desta discussão:

  • Introdução
  • O feminismo antes da separação entre sexo e gênero
  • A primeira onda de reformadoras feministas
  • O feminismo de segunda onda: Simone de Beauvoir e a distinção entre sexo e gênero
  • Beauvoir chega à América: Betty Friedan e a construção de uma identidade humana sadia
  • Kate Millett e a revolução sexual plenamente realizada
  • A terceira onda: a revolução contínua e o transgenerismo
  • Judith Butler: a teoria queer, defesa da homossexualidade e direitos transgêneros
  • Conclusão
  • Referências

Introdução

Muitas controvérsias intransigentes nas guerras culturais de hoje estão relacionadas a sexo e gênero. Há discordâncias, por exemplo, sobre se o casamento é restrito a um homem e uma mulher, quem pode usar quais banheiros públicos e se devemos esperar que as mães devam cuidar de seus filhos, pelo menos em seus anos formativos. Essas controvérsias são emblemáticas da impossibilidade de definir o que é um homem, o que é uma mulher ou sequer se identidades sexuais estáveis estão vinculadas a nosso corpo.

Essa confusão tem sua origem na revolução iniciada pela feminista francesa Simone de Beauvoir após a Segunda Guerra Mundial. Antes da publicação de O Segundo Sexo, de Beauvoir, em 1949, a ciência e a filosofia presumiam que as opiniões sobre homens e mulheres prevalecentes na sociedade eram baseadas no sexo, de modo que o gênero correspondia ao sexo. Beauvoir discordou. Ela traçou uma distinção entre o gênero (as opiniões prevalentes na sociedade sobre o que o homem e a mulher deveriam ser) e o sexo ou a biologia (as características aparentemente imutáveis do corpo, e os traços psicológicos estreitamente vinculados a ele). As feministas de Beauvoir em diante argumentariam que não há razão para o sexo determinar nosso destino. Até então, a biologia da mulher aparentemente a encaminhara à vida familiar e a tornara dependente de seu marido.

Essas feministas prometeram trazer ao mundo uma mulher nova e independente, que ultrapassaria seu gênero. Essa nova mulher não mais se orientaria pelo que o seu corpo ou a sociedade sugeriam quanto a seu destino. Segundo esse modo de pensar, o gênero não passa de uma ideia construída para manter as mulheres em posição subordinada. Essa crítica dizia demonstrar como as realidades biológicas e os usos e costumes sociais que contribuíam para a identidade feminina não eram nem necessários nem sadios. Ela postulava um futuro em que as mulheres seriam livres para definir sua identidade sem qualquer referência a seu corpo. Um mundo de liberdade total seria um mundo “além do gênero”, em que nenhum membro da sociedade teceria suposições acerca de qualquer indivíduo com base na biologia.

Articulada inicialmente por Beauvoir na década de 1940 e mais tarde por discípulas americanas como Betty Friedan, Kate Millett e outras nos anos 1960, a aspiração feminista de criar um mundo sem gênero preparou o terreno para uma visão mais radical, nos anos 1990, de acadêmicas como Judith Butler, que estendeu a ideia para abranger a defesa dos direitos de transgêneros.

A ideia de um gênero supostamente socialmente construído imposto a todas as pessoas obrigatoriamente suscita um intenso debate e, assim, chamados cada vez mais radicais pela “desconstrução” do gênero em nome de maior autonomia e criatividade na identidade humana. A nova filosofia libertadora se propõe a desconstruir ou expor normas como sendo obstáculos arbitrários à identidade humana sadia. Levando as coisas um passo além, a chamada “teoria queer”, derivada do pensamento pós-estrutural de Michel Foucault, questionou a naturalidade e necessidade das práticas cotidianas de autocontrole das paixões sexuais, a proeminência das normas heterossexuais e o conceito binário de gênero.

O resultado vem sendo uma revolução crescente na qual aquilo que parecia ser natural e possivelmente também crucial para a identidade humana é descrito como sendo extrínseco, acidental e repressivo. A partir dessa revolução, se dá outro nível de confusão em relação a estender o casamento aos casais formados por pessoas do mesmo sexo, aos pronomes de gênero, a questões transgêneros sobre o uso de banheiros e vestiários públicos, à importância da fidelidade no casamento e a um sem-número de permutações adicionais dessas questões.

Essa revolução exige uma adaptação contínua por parte do governo, das convenções morais públicas e até no conceito da linguagem. Ela dá lugar a novos sentimentos e opiniões, sugere novos conceitos e modifica cada aspecto da vida na esfera das relações pessoais. Muitas facetas da vida familiar foram turvadas pelo esforço feminista de separar sexo de gênero e pelos esforços subsequentes para criar um mundo mais além do gênero e sem papéis preconcebidos.

Ademais, a aplicação supostamente objetiva da ciência liberacionista identifica ainda mais distinções socialmente construídas. Como a sociedade fabrica a diferença de gêneros, reza a teoria, o gênero pode ser desfeito e refeito, por meio da reconstrução apropriada da sociedade. Essa é a base de um mundo erguido sobre a libertação dos indivíduos e a liberdade de criar uma identidade sem restrições sociais ou biológicas.

O feminismo antes da separação entre sexo e gênero

As pensadoras feministas de todas as vertentes hoje se definem como sendo contra o essencialismo biológico e seu patriarcado político e cultural concomitante. O essencialismo biológico declara que o caráter e papel diferente de homens e mulheres tem base permanente na biologia sexual e nas tendências psicológicas inatas que têm sua origem no sexo. Assim, segundo essa teoria, o sexo biológico determina em grande medida como as sociedades concebem o gênero, sendo as mulheres vistas como sendo mais passivas, mais afetuosas, menos agressivas e violentas que os homens,1 mais sexualmente modestas e menos promíscuas que os homens,2 menos fisicamente fortes que os homens3 e mais interessadas em crianças e mais carinhosas em relação a elas que os homens, que seriam mais ousados e agressivos,4 entre uma miríade de outras diferenças.

No século 19, o mais influente defensor do patriarcado com essa base foi Charles Darwin, que defendeu o fundamento sexual do gênero com base em argumentos aparentemente confiáveis e científicos.5 Especialmente em The Descent of Man (A Origem do Homem e a Seleção Sexual), publicado em 1871,6 Darwin argumenta que homens e mulheres têm caráter diferente porque possuem uma composição genética distinta, que tem sua origem nas estratégias bem-sucedidas de reprodução e sobrevivência de seus antepassados genéticos.7

  • Homens fortes, capazes de sobreviver, conseguiam acesso sexual a mulheres capazes de atrair homens e alimentar e cuidar de filhos – de acordo com Darwin, essa é a base natural da ideia de que homens são agressivos e mulheres são passivas;
  • Os homens precisavam ter certeza de qual era sua prole, para protegê-la, de modo que as mulheres pelo menos fingiam ser mais modestas e sexualmente passivas – a base natural do padrão sexual duplo; e
  • Os homens eram os provedores da família, enquanto as mulheres se especializavam em cuidar dos filhos – a base natural da divisão de trabalho entre os sexos.

Ideias semelhantes são encontradas também no pensamento de Sigmund Freud, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, August Comte e outros. Cada um deles pensava que as mulheres têm menos tendência a candidatar-se a cargos políticos, priorizar sua carreira em lugar da família, trabalhar agressivamente em busca da riqueza ou ser sexualmente promíscuas.8 Otto Weininger chega a argumentar que a emancipação das mulheres é uma contradição em termos e muitas feministas influenciadas por Beauvoir citam seu livro Sex and Character como sendo representativo dessa tradição científica patriarcal.9

A primeira onda de reformadoras feministas

Enquanto esses essencialistas biológicos escreviam, surgiu a primeira onda de reformadoras feministas (1850-1920), criticando a condição subordinada das mulheres. Inspiradas no pensamento de Mary Wollstonecraft (1759-1797), essas pensadoras operavam dentro de um quadro intelectual classicamente liberal e buscavam “uma justificação dos direitos das mulheres”, como sugere o título do livro de Wollstonecraft de 1792. Nos Estados Unidos, essa justificativa foi concebida como a ampliação dos direitos das mulheres, dentro da dedicação tradicional norte-americana aos direitos individuais e ao governo limitado.10

As maiores realizações das feministas de primeira onda foram a conquista do direito legal das mulheres de possuir bens, a aceitação legal do divórcio e, por fim, o direito ao voto. Se as mulheres não tinham se mostrado interessadas em exercer esses direitos até então, argumentaram as feministas da primeira onda, essa aparência de apolitismo se explicava pelo fato de a sociedade não proteger esses direitos. Elas receavam que, como argumenta John Stuart Mill em Sujeição das Mulheres (1869), nenhuma sociedade pudesse ainda saber o que é realmente uma mulher, porque “a força inteira da educação … escraviza a mente da mulher”, atrelando-a a deveres maternos e outros em que ela se sacrifica.11 O velho sistema do coverture, no qual a mulher perdia sua identidade legal quando se casava, subestimara a capacidade de cidadania das mulheres. Sob esse regime de liberdade e independência maior, homens e mulheres poderiam fazer escolhas diferentes.12

O contexto legal pelo qual ansiavam fortemente as feministas de primeira onda foi estabelecido no mundo ocidental, em maior ou menor grau, no primeiro terço do século XX.

O feminismo de segunda onda: Simone de Beauvoir e a distinção entre sexo e gênero

Começando com Simone de Beauvoir, a mãe do feminismo de segunda onda, as feministas passaram a manifestar desapontamento com as opções reais feitas por mulheres munidas dos direitos e proteções conquistados pelas feministas da primeira onda. Muitas mulheres ainda priorizavam a maternidade, deixando a carreira profissional em segundo plano, e valorizavam os relacionamentos amorosos dentro do casamento mais que a libertação sexual e as relações de mercado fora do lar. Quando escolhiam uma profissão, tendiam a optar pelas profissões de atendimento e cuidado a outros, em lugar de aspirar tornar-se executivas-chefe, poetas boêmias ou acadêmicas. De modo geral, a despeito de um século de luta feminista, as mulheres ainda viviam de modo mais passivo e dependente do que as feministas de segunda onda consideravam ser sadio ou apropriado.

As feministas de segunda onda argumentavam que essa falta de progresso visível podia ser atribuída ao patriarcado cultural arraigado, devido ao qual homens e mulheres continuavam a se pautar por ideias que seguiam a linha do essencialismo biológico. A liberdade legal não bastava para garantir a igualdade concreta para as mulheres. Para levar as mulheres a fazer escolhas diferentes seria necessária uma reforma cultural mais fundamental que as incentivasse a conquistar autonomia e abrir mão de suas personalidades de mãe e esposa. Beauvoir e suas discípulas norte-americanas recomendaram que as mulheres fossem libertadas da cultura patriarcal acumulada; elas dedicaram muita energia intelectual à procura de maneiras de identificar as premissas que atrelavam as mulheres a seu caráter antigo.13

O pensamento de Beauvoir é o primeiro a oferecer uma justificativa intelectual para a diferenciação entre sexo e gênero e o primeiro a afirmar que o significado do sexo e do corpo é determinado pela cultura, e apenas por ela. Seu livro O Segundo Sexo (publicado em francês em 1949, enquanto a tradução inglesa saiu em 1953) estrutura o argumento para o feminismo contemporâneo e para todos os pensadores subsequentes que criticam e desconstroem distinções humanas aparentemente naturais.14

Essa desconstrução é mais evidente na mais célebre expressão do pensamento de Beauvoir, a pergunta que abre O Segundo Sexo: “O que é uma mulher?” Ela responde:

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.  Nenhum destino biológico, psíquico ou econômico determina a forma que a fêmea humana assume na sociedade; é a civilização como um todo que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam como feminino.”15

As mulheres, reza o argumento, eram definidas passivamente por sua situação biológica, cultural e civilizacional. Elas cresciam e assumiam os papéis artificiais de esposa dependente e mãe abnegada, seguindo a influência cultural dos papéis de gênero, e esses papéis de gênero tinham sido construídos sobre uma interpretação aparentemente óbvia do corpo feminino. Os indivíduos que se permitiam ser assim definidos, possivelmente pensando falsamente que a cultura é um reflexo da natureza, manifestam o que Beauvoir descreveu como uma “imanência” quase sub-humana.

Para Beauvoir, os traços que caracterizam as mulheres “imanentes” são frutos de uma socialização ou doutrinação social onipresente. Beauvoir identifica como a imanência é ensinada e reforçada de mil maneiras diferentes. Por exemplo, a sociedade forma as mulheres para serem passivas e ternas e ensina os homens a tomar a iniciativa nas relações sexuais. A iniciativa masculina no sexo constitui “um elemento essencial” do “quadro geral” do patriarcado.

“Aos olhos da menina pequena, tudo ajuda a confirmar essa hierarquia. A cultura histórica e literária à qual ela pertence, as canções e lendas com as quais ela é ninada, constitui uma longa exaltação do homem. … Os livros infantis, a mitologia, os contos, as histórias, todos refletem os mitos nascidos do orgulho e dos desejos de homens. Assim, é através do olhar dos homens que a garotinha descobre o mundo e nele lê seu destino.”16

E Beauvoir quer dizer realmente tudo. A doutrinação começa cedo. Os homens, por exemplo, são preparados para ser mais velozes, mais fortes, mais competitivos e mais agressivos que as meninas nos esportes, através de nosso pensamento de que os esportes “fazem bem aos meninos”, e as meninas são incentivadas a ser dóceis, tímidas, femininas e maternais, em lugar de correrem o risco de se machucar.17

A sociedade cria e batiza a promiscuidade e o desejo sexual dos homens, enquanto as mulheres são vistas como objetos de desejo sexual. Os homens devem conquistar as mulheres; as mulheres são ensinadas a sonhar em ser conquistadas. As meninas são ensinadas a sentir vergonha sexual e agir com modéstia, enquanto aos meninos é ensinada autoconfiança e erotismo.18 Assim, segundo Beauvoir, se dá a aceitação universal dos dois pesos e duas medidas sexuais pelos quais os homens ganham passe livre para a promiscuidade e o adultério, enquanto as mulheres são punidas.19

Treinadas para serem passivas, as mulheres, para Beauvoir, aceitam seus papéis aparentemente subordinados de mães e donas-de-casa. Contra essa educação para a imanência, Beauvoir incentiva o que qualifica como “transcendência” – a ideia de que os seres humanos precisam lutar para libertar-se da influência social ou natural, em uma “luta contínua para alcançar outras liberdades” e em um esforço para “engajar-se em projetos livremente escolhidos”.20 Os seres humanos ou serão construídos passivamente por sua situação (imanência) ou se definirão e se construirão por si mesmos (transcendência). “O homem é definido como um ser que não é fixo, que se faz aquilo que é”, escreve Beauvoir. “O homem não é uma espécie natural: é uma ideia histórica.”21

Como seres históricos sem limites fixos, as mulheres não são obrigatoriamente regidas por quaisquer dos costumes, traços psicológicos atribuídos, considerações econômicas, virtudes morais, corpos respectivos, atributos culturais ou outros limites que há muito tempo as convertem no “segundo sexo”. Os homens têm sido transcendentes; as mulheres têm sido relegadas a um mundo de imanência. Se as mulheres transcendessem seu destino atual de segundo sexo, desfrutariam um “futuro indefinidamente aberto” em sua luta por mais liberdade e independência.22

Na visão de Beauvoir, a passividade sexual e o nexo de maternidade e casamento se somaram para prender as mulheres numa armadilha de imanência e estagnação. Essas armadilhas podem ser abertas com a revolução sexual e com uma vida profissional independente em um local de trabalho genuinamente liberado, duas coisas que constituem passos no caminho para se chegar a outras liberdades. As revolucionárias sexuais devem rejeitar a modéstia sexual e a domesticidade, devem adotar carreira profissional independente e desenvolver as qualidades de caráter necessárias para isso.

A contracepção e o aborto também desempenham papel importante no projeto reformista de Beauvoir. O controle da natalidade ajuda as mulheres a aventurar-se sexualmente mais, a ser mais promíscuas e menos dependentes sexualmente de um homem apenas. Sem precisarem se preocupar com as consequências do sexo, as mulheres poderiam tomar a iniciativa em questões sexuais, possivelmente até se tornando as parceiras controladoras e escapando da postura de derrota previamente descrita.23 Para reforçar esse argumento, Beauvoir segue o que diz Freud, argumentando que as mulheres passivas são sexualmente “frígidas”, reprimidas, narcisistas e nervosas.24

Na visão de Beauvoir, ser uma mulher “passiva” é ser uma amante desinteressante que depende de sua aparência e maquiagem para conservar aceso o interesse de um homem. Mas a disponibilidade de contracepção e do aborto “é apenas o ponto de partida da libertação das mulheres”,25 porque as mulheres também precisam acreditar que usar métodos de contracepção é necessário e honrável, uma contribuição crucial para uma vida boa e possivelmente até uma prática de responsabilidade social. A vida sexual da mulher precisa expressar sua independência; ela nunca deve ser dependente de qualquer pessoa específica para obter sua satisfação.

Beauvoir não se limita a apelar pela legalização e disponibilização pública da contracepção e do aborto. Como o sexo sem proteção pode levar à maternidade, a melhor maneira de incentivar o uso de métodos anticoncepcionais é através de uma crítica contundente à maternidade e vida familiar, crítica essa que questione não apenas o caráter natural dessas duas coisas, mas também sua nobreza e nossa necessidade delas. Como ela diz ao refletir sobre O Segundo Sexo (e com a ajuda da elaboração forte de seu pensamento feita por Shulamith Firestone): “Creio que a família precisa ser abolida”.26

Para Beauvoir, o falso enaltecimento da maternidade captura a divisão sexual e de gênero do trabalho que era própria do passado, com os homens investindo em carreiras interessantes enquanto as mulheres cuidam do lar. Ao limitar a mulher a desempenhar tarefas caseiras que se repetem eternamente, “cansativas, vazias, monótonas”, o casamento a “mutila” e “aniquila”. No casamento, “sua vida está virtualmente acabada para sempre”.27 Ademais, segundo Beauvoir, nenhum homem que desempenha um trabalho criativo fora de casa pode respeitar uma mulher que é apenas dona-de-casa. Logo, o casamento proporciona pouca proteção e satisfação às mulheres. Não surpreende que ele assinale um “assassinato lento” e entediante da vida de maridos e mulheres.28

Em termos práticos, Beauvoir visualiza um futuro em que as mulheres usem a contracepção para escapar da lenta morte em vida que caracteriza a vida de mães e esposas. Para suas seguidoras feministas, a disponibilidade fácil de métodos anticoncepcionais e a crítica fundamental à maternidade abrem o caminho a novas práticas como creches pagas pelo Estado e novas tecnologias como a clonagem, que podem muito bem vir a levar adiante o processo de desconstrução e libertação de gênero.

Quando tece essa crítica, Beauvoir sugere que todos ou a maioria dos elementos da vida que se considerava que tivessem suas origens no sexo (por exemplo a maternidade) são, na realidade, socialmente construídos; logo, podem ser modificados.29 Àqueles que argumentariam que as diferenças corporais entre homens e mulheres limitam a quantidade de experimentação social que pode ser empreendida, Beauvoir responde enfaticamente: “A situação não depende do corpo; é o inverso que é a verdade”.30 O que importa é como concebemos o corpo, não o corpo em si.

Se os essencialistas biológicos resumiam o gênero ao sexo, Beauvoir faz o oposto: não existe sexo, não existem mulher ou homem naturais, não há biologia significativa estável que esteja na base de um homem ou uma mulher “absolutos”; mulheres e homens são inteiramente construtos sociais – ou “gênero”. Também o sexo é apenas “gênero”, ou seria, se os seres humanos o interpretassem criativamente. A criatividade humana, reagindo inventivamente a mudanças em nossa situação e manipulando a própria situação com tecnologia (por exemplo, com a contracepção e, posteriormente, com a engenharia genética), pode fabricar uma nova mulher e um novo homem. Os indivíduos transcendentes se criam, libertos dos papéis de gênero definidos pela sociedade, pela natureza e pelo sexo.

Beauvoir não entra em detalhes sobre o que aguarda os seres humanos quando mudanças legais, avanços tecnológicos e novos mitos, clichês e narrativas se tornarem realidade. As mulheres serão “indivíduos autônomos”, ela escreve. Cada mulher passará finalmente a ser “um ser humano inteiro”, capaz de “viver em si mesma e por si mesma”.31 Pensadores subsequentes seguem o caminho apontado por Beauvoir e traçam uma imagem mais vívida de como poderia ser um mundo de seres humanos transcendentes.

Beauvoir chega à América: Betty Friedan e a construção de uma identidade humana sadia

Quando se ultrapassam as ideias tradicionais de homem ou mulher, surge a questão do que agora constitui a identidade humana. The Feminine Mystique (A Mística Feminina) (1963), de Betty Friedan, aceita o quadro intelectual delineado por Beauvoir e suas conclusões sobre a psicologia da identidade humana. Mas Friedan reformula essas ideias e conclusões de maneira mais condizente com a política e a vida moderna norte-americanas – ou seja, nos termos da emergente ciência da libertação humana, característica do progressismo norte-americano.

Friedan afirma que era uma simples garota suburbana quando topou com o pensamento de Beauvoir:

“Foi O Segundo Sexo que me apresentou a uma abordagem existencialista da realidade e da responsabilidade política – que, concretamente, me libertou da rubrica da ideologia autoritária e me conduziu a qualquer análise original da existência feminina que eu possa ter contribuído para o movimento feminista e sua política singular. … Quando primeiro li O Segundo Sexo, na década de 1950, eu ainda me descrevia no censo como ‘dona de casa’. Ainda estava envolta no abraço não analisado da mística feminina.”32

Friedan emprega o termo “mística feminina” para descrever o complexo de leis, opiniões e pressões que convertem mulheres nas donas de casa passivas que Beauvoir descreveu como o “segundo sexo”. Friedan apresentou o endosso abstrato da “transcendência” feito por Beauvoir, com sua sugestão de converter seres humanos em deuses, em termos mais concretos, mais realistas e mais coerentes com a dedicação dos Estados Unidos aos direitos individuais. A ideologia progressista predominante, encarnada nas universidades norte-americanas, colocou a nova ciência a serviço da reconstrução cultural, apoiando a formação de identidades humanas sadias, escolhidas.

Para Friedan, a velha ciência patriarcal sempre reforçara a “mística feminina”, aconselhando as mulheres a buscarem sua realização pessoal nas tarefas de esposa e mãe que cabiam exclusivamente a elas. De acordo com essa ciência, as mulheres do tempo de Friedan deveriam estar satisfeitas por cumprirem seu destino de esposas e mães durante o “baby boom”.

Mas Friedan diagnosticou uma insatisfação que podia ser explicada por uma discrepância entre as expectativas da sociedade e os sonhos reais das mulheres. Para ela, as mulheres dos anos 1950 e 1960 ansiavam por escapar de seu destino imanente e sofriam de tédio, sentindo-se presas numa armadilha e sem ter nada de importante a fazer. Elas sofriam do “problema que não tem nome”.33 Segundo Friedan, é um problema que ninguém até hoje identificou – nem cientistas, médicos, conselheiros, terapeutas, psiquiatras ou a imprensa popular.

Uma mulher que deixa que a sociedade defina sua vida “abre mão de seu eu”, segundo Friedan. Ela “não tem meta, não tem objetivos, não tem ambição que oriente o rumo de seus dias em direção ao futuro, que a faça se esticar e crescer para além do número limitado de anos durante os quais seu corpo pode cumprir sua função biológica”. Essa mulher comete “uma espécie de suicídio”.34

Ao lado da velha ciência patriarcal estava surgindo uma nova ciência libertadora que mostraria como as velhas ideias de fato incapacitavam as mulheres. Ela demonstraria a importância da libertação humana para uma identidade sadia. “O cerne do problema das mulheres hoje”, diz Friedan, “é um problema de identidade –um atrofiamento ou evasão de crescimento que é perpetuado pela mística feminina.”35 Friedan escreve:

“Acho que os especialistas em muitos campos há muito tempo têm pedaços dessa verdade sob a lente de seu microscópio, sem se darem conta disso. Encontrei elementos disso em certos avanços teóricos e de pesquisas nos campos da psicologia, ciência social e ciência biológica cujas implicações para as mulheres parecem nunca ter sido estudadas. Tomei consciência de um conjunto crescente de evidências, muitas das quais ainda não foram apresentadas publicamente porque não se enquadram nos modos atuais de pensamento sobre as mulheres. São evidências que colocam em questão os padrões da normalidade feminina, da adaptação feminina, da realização feminina e da maturidade feminina.”36

Ao invés de viver segundo a mística feminina, cada mulher precisa resolver sua própria “crise de identidade”, encontrando “o trabalho, a causa ou a meta que evoque … criatividade”.37 O trabalho criativo fomenta a luta genuína, e essa luta favorece o crescimento pessoal. Através dessa criatividade a mulher pode tornar-se quem ela realmente é e alcançar a “realização pessoal”, expressão que Friedan toma emprestada do psicólogo Abraham Maslow, de meados do século 20.

Maslow, um dos líderes da nova ciência libertadora, argumenta que para alcançar os níveis de felicidade mais altos é preciso “abrir mão de uma vida mais simples, mais fácil e menos trabalhosa” como mãe e esposa “em troca de uma vida mais exigente, mais difícil”, trabalhando por uma missão maior “que busque o bem da humanidade”.38 As pessoas realizadas “fazem uso pleno de seus talentos, capacidades e potenciais. Essas pessoas parecem estar se realizando e fazendo o melhor de que são capazes” –e parecem ter consciência disso.39 Elas têm “boa autoconfiança, autoavaliação positiva, sentimentos de capacidade ou superioridade, de maneira geral, e ausência de timidez ou constrangimento”.40

Uma mulher plenamente desenvolvida procura “ultrapassar a feminilidade para alcançar a plena humanidade que compartilha com os homens”, escreve Maslow.41 O ápice da motivação humana é o desejo de realização pessoal, que Maslow define como sendo o “crescimento … o esforço em direção à saúde, a busca pela identidade própria e a autonomia, o anseio por excelência”.42

Seguindo o exemplo de Maslow, Friedan enxerga essas pessoas avançando “além do ‘privatismo’”, em direção a “alguma missão na vida … fora delas mesmas”, desfrutando dos prazeres do sexo mais que outras porque elas possuem um senso mais forte de sua própria individualidade, e amando graças a um amor dado livremente e à “admiração espontânea”, em lugar de um amor carente, movido pela dependência pessoal.43 Friedan aplica a teoria de Maslow e conclui que os velhos papéis de gênero empobrecem as mulheres e que as mulheres autorrealizadas seriam felizes.44 Uma pessoa autorrealizada é “psicologicamente livre – mais autônoma”.45

Friedan representa uma segunda onda de pensamento político progressista, em que a ênfase do progressismo do New Deal sobre a reconstrução da economia deu lugar à ênfase da revolução sexual dos anos 1960 sobre a reconstrução das grandes instituições culturais e o desabrochamento de um novo tipo de ser humano/mulher autorrealizado. Friedan enquadra clinicamente as questões de identidade sadia, apresentando-os como promoção da saúde psicológica, e vincula a realização da libertação ou autonomia àquilo que promove a saúde mental, a satisfação pessoal e a autorrealização, tudo isso apresentado de maneira em grande medida neutra em termos de valores: é possível a pessoa se realizar, desde que ela construa seu próprio destino, seja qual for o destino escolhido.

Esse discurso encerra uma crítica implícita às mulheres que assumem papéis tradicionais na vida, a não ser que elas possam independente e conscientemente compreender e abraçar todas as implicações desses papéis. A responsabilidade de psiquiatras, pais, do governo em geral e dos educadores seria assegurar que nenhum indivíduo seja forçado a seguir as noções sociais preconcebidas sobre o modo correto de viver e garantir que todos os indivíduos tenham liberdade para escolher sua própria identidade. É uma tarefa que requer diagnóstico contínuo e uma busca constante por uma solução.

Após a publicação de A Mística Feminina, a exposição da influência do patriarcado e a realização da promessa de um novo futuro para o crescimento individual passaram a ser elementos cruciais das pesquisas científicas. A ciência havia revelado o poder oculto do gênero; logo, poderia apontar para a disparidade entre o que as mulheres tradicionalmente foram e o que as mulheres a caminho da realização pessoal própria podem vir a ser. Segundo essa linha de pensamento, a identidade humana sadia para as mulheres transcenderia as ideias sobre gênero predominantes na sociedade.

Kate Millett e a revolução sexual plenamente realizada

Kate Millett, cuja obra Sexual Politics (1970) é o primeiro livro feminista importante a abraçar a distinção entre as palavras sexo e gênero, talvez assinale o auge do pensamento feminista. Ela observa a necessidade de serem reconstruídas as disciplinas acadêmicas, em especial as ciências sociais e humanas, com nova ênfase sobre as estruturas de opressão de gênero que sempre subjugaram as mulheres. Para Millett, as universidades tornam-se duplamente fundamentais para a transformação social: elas identificam as fontes de doutrinação e opressão social das quais as mulheres e outros precisam ser libertadas e elas recomendam métodos para a construção de um mundo sem gênero.

A teoria de política social de Millett abrange uma pauta de pesquisas para a nova ciência da libertação, em que a biologia, a sociologia, a economia, a antropologia, a psicologia, a história e outras disciplinas devem ser orientadas a demonstrar como o gênero foi socialmente construído no passado. A implicação clara é que tais construções podem ser desmontadas, e uma nova sociedade pode ser construída, com a ajuda dessas e outras disciplinas.46

Essa ciência libertadora pode identificar e condenar as fontes de opressão, mas, por si só, pode apenas nos oferecer um vislumbre de como seria um mundo futuro sem gênero. Para produzir uma revolução nas ideias relativas a sexo e gênero seria necessário um trabalho de imaginação promovido por meio de todas as instituições públicas: universidades (especialmente as novas universidades de ciências humanas) e a cultura popular exerceriam um papel em empreender tal exercício de imaginação para produzir essa revolução. Millett imagina que “uma revolução sexual plenamente realizada” teria três aspectos principais.

Em primeiro lugar, uma revolução sexual aboliria “a ideologia da supremacia do homem e a socialização tradicional por meio da qual esta é conservada em questões de status, papel e temperamento”, levando à “integração das subculturais sexuais separadas e a uma assimilação de ambos os lados da experiência humana antes segregada”.47 Os papéis diferentes na criação dos filhos, por exemplo, provavelmente iriam se enfraquecer e, com o tempo, desaparecer, à medida que os papéis parentais passassem a ser menos definidos pelo gênero e mais andróginos.

Outro alegado elemento da ideologia masculina é a tradição do amor romântico como sendo fundamental nas relações entre homens e mulheres. O amor, “possivelmente ainda mais que a gestação de filhos, é o pivô da opressão das mulheres”, escreve Shulamith Firestone.48  Para ela, as mulheres parecem ser sonhadoras em relação ao amor, às emoções e aos relacionamentos. Essas preocupações ocupam sua atenção, enquanto os homens procuram realizar um trabalho criativo sozinhos. Assim, as mulheres parecem ser “mais monógamas, mais hábeis em amar, mais possessivas, mais apegadas, mais interessadas em relacionamentos (com alto grau de envolvimento) que no sexo propriamente dito”.

Pelo fato de homens e mulheres não serem igualmente vulneráveis no amor (os homens podem sair de um relacionamento amoroso com menos consequências econômicas ou emocionais), o amor não é possível sem uma revolução social completa em que homens e mulheres possam ser igualmente vulneráveis (ou igualmente invulneráveis) e darem apoio mútuo (ou demonstrar indiferença mútua) uns aos outros. “O erro não é no processo do amor em si, mas em seu contexto político, ou seja, de poder desigual: o quem, por que, quando e onde do amor é o que faz dele hoje um holocausto tão grande.” 49

Em segundo lugar, é necessária uma mudança drástica na “família proprietária patriarcal”, para que as mulheres alcancem a “independência econômica completa”. É óbvio que as mulheres precisam conseguir um trabalho que as realize fora de casa. Um “corolário importante” dessa meta, escreve Millett, é “o fim de seu status atual de propriedade do homem e o fim da negação dos direitos dos menores de idade”.50

A dependência das crianças é uma invenção do patriarcado, segundo essa visão, cuja finalidade é levar as mulheres a sentir que são necessárias para criar seus filhos. Uma carta dos direitos dos menores fomentaria a independência deles da família, também libertando as mulheres dela. Com menos deveres conjugais, as mulheres seriam mais livres para buscar sua independência econômica fora do casamento. Segundo essa teoria, a infância também parece ser um gênero – uma fase da vida inventada pela sociedade e que gera expectativas sobre como devem agir “crianças” carentes. Assim, a abolição do gênero requer um movimento em direção à abolição da infância.

Beauvoir se inclinou nessa direção depois de descobrir com The Dialectic of Sex, de Firestone, que, nas palavras de Beauvoir, “as mulheres não serão libertadas enquanto não forem libertadas de seus filhos, e, da mesma forma, enquanto os filhos não forem libertos de seus pais”.51 Essa libertação pode também tornar necessária a reprodução artificial (por exemplo a clonagem) e a profissionalização do atendimento às crianças ou a disposição de deixar crianças livres para desenvolver-se por conta própria, como no caso de crianças “do gueto”, como observa Firestone.52 Na realidade, tanto Beauvoir quanto Firestone visualizam crianças tendo vidas sexuais livres, 53 tornando-se economicamente viáveis e convertendo-se em contribuintes importantes para uma sociedade futura, em pé de igualdade com os adultos. Graças a isso, a limitação do pátrio poder se encaixa na rubrica de garantir a independência das mulheres.

Em terceiro lugar, a revolução sexual também requer “o fim das inibições e dos tabus sexuais tradicionais, em particular os que mais ameaçam o casamento patriarcal monogâmico: a homossexualidade, a ‘ilegitimidade’, a sexualidade adolescente, pré-conjugal e extraconjugal”. As restrições à atividade sexual reforçam ideias de amor romântico monogâmico, responsabilidade parental, dependência econômica e outros atributos culturais que definem a vida familiar tradicional. A emancipação da sexualidade dessas restrições ajudaria a divorciar o casamento da sexualidade e permitiria aos indivíduos expressar seus instintos humanos primais sem inibição. O sexo teria sido reprimido e canalizado para a reprodução responsável, mas, sob condições de liberdade sexual, todas as expressões sexuais receberiam aprovação pública igual.54

Na visão de Millett, o cultivo de uma identidade individual, em vez de aceitar passivamente a identidade proposta pela sociedade, propicia um indivíduo mais sadio e feliz. O desnível entre as exigências artificiais da sociedade e as exigências da autorrealização individual, identificada por Friedan como “o problema que não tem nome”, é central para o projeto científico. O caminho para um mundo de realização pessoal e libertação passa por uma revolução sexual que possui três elementos: ela requer a destruição das fontes patriarcais de socialização, o cultivo de uma ética de individualidade e a remoção das inibições sexuais.

Ao mesmo tempo em que representa o projeto feminista plenamente articulado, a revolução sexual proposta por Millett também encerra implicações profundas para a aceitação da homossexualidade, do transgenerismo e outras questões de identidade de gênero. A realização das ambições feministas requer que se transcenda uma definição estreita das questões ligadas às mulheres. Requer que mudemos nossas ideias sobre filhos, amor, virilidade e a própria existência dessas categorias enquanto tais. A missão teórica iniciada com o pensamento de Beauvoir tem muitas aplicações diretas na prática política e no cotidiano, desconstruindo o que as pessoas enxergam como sendo naturalmente garantido e certo.

A terceira onda: a revolução contínua e o transgenerismo

A ênfase de Betty Friedan sobre identidade levou reformadores a aplicar o conceito da crise de identidade não apenas às mulheres, estendendo-a primeiro para a homossexualidade, depois para as aberrações sexuais naturais e, mais recentemente, para os indivíduos transgênero. Isso deslanchou uma terceira onda de feminismo que procura transcender o caráter binário do feminismo de Beauvoir, avançando em direção às suas esperanças de um “futuro indefinidamente aberto” de identidades sexuais.55

Os avanços posteriores ao feminismo de segunda onda incluem a mudança na avaliação feita dos transexuais (pessoas que se submetem a cirurgias de troca de sexo) e das pessoas que nascem com aberrações sexuais, como os hermafroditas. As feministas de segunda onda reconheceram a importância para suas teorias das pessoas nascidas com aberrações anatômicas. Beauvoir, Germaine Greet e Kate Millett aludem às aberrações sexuais para mostrar que o conceito da natureza ao qual o sexo é associado “nem sempre é inequívoco”.56 A natureza, eles observam, nem sempre produz seres humanos identificáveis como machos ou fêmeas.

As feministas de segunda onda acolheram positivamente o trabalho científico de Robert Stoller sobre o domínio que o gênero parece exercer sobre a identidade humana. Stoller fundou em 1965 o Centro de Identidade de Gênero na Universidade da Califórnia-Los Angeles e em 1968 lançou um livro muito influente, Sex and Gender.

Para Stoller, o sexo tem “conotações anatômicas e fisiológicas”, enquanto o gênero está relacionado a “áreas tremendas de comportamento, sentimentos, pensamentos e fantasias que … não possuem conotações primariamente biológicas”. Embora “sexo e gênero aparentem, para o bom senso, estar inextricavelmente ligados, … os dois reinos … não são vinculados inevitavelmente em qualquer coisa como um relacionamento direto” e “podem seguir caminhos inteiramente independentes”.57

O gênero pode, de fato, existir contrariamente à anatomia e fisiologia, como acontece no caso de pessoas nascidas com características anatômicas masculinas e femininas:

“Embora a genitália externa (pênis, testículos, escroto) contribua para um senso de masculinidade, nenhum desses três elementos é essencial para esse senso, nem sequer os três juntos. Na ausência de evidências completas, concordo com Money e os Hampson, que, em sua série ampla de pacientes intersexuais [que possuem características de ambos os sexos], demonstram que o papel de gênero é determinado por forças pós-natais, independentemente da anatomia e fisiologia da genitália externa.”58

Stoller enxerga a identidade de gênero como sendo moldada por experiências sociais e sexuais importantes vividas nos primeiros 18 meses de vida. A identidade de gênero é tão pertinaz que, ele argumenta, seria mais fácil mudar cirurgicamente o sexo de um adolescente do sexo masculino designado como menina ao nascer e criado como menina que mudar seu senso de eu do gênero feminino.

Assim, Stoller aponta para um pioneiro do ativismo transexual, John Money, co-fundador da Clínica Johns Hopkins de Identidade de Gênero, em 1965. Money trabalhou para conseguir a aprovação da cirurgia de redesignação sexual em 1966 e contribuiu para a criação da categoria de transexual, para abranger pessoas com identidade sexual mista.

Money ficou famoso graças ao caso de David Reimer, catalogado por Money e a co-autora Patricia Tucker em Sexual Signatures (1976). Uma circuncisão malfeita aos 8 meses de idade deixou o menino sem pênis. Profissionais do John Hopkins convenceram os pais de David a castrá-lo e educá-lo segundo os padrões convencionais como menina, tendo seu nome sido mudado para Brenda. Não foi construída uma vagina para converter fisicamente Brenda em menina. Consultas médicas anuais de acompanhamento “provaram que todas as partes conseguiram adaptar-se bem à decisão”.59

Money considerou que o caso provou que “a porta da identidade de gênero está aberta ao nascimento para uma criança normal, não menos que para uma criança nascida com órgãos sexuais inacabados … e que ela permanece aberta por pelo menos um pouco mais de um ano após o nascimento”.60 Tanto David quanto seu irmão Brian morreriam antes de chegar aos 40 anos, ambos por suicídio após um histórico de doença mental.61

Depois de contar a história de David Reimer, Money relata várias outras sobre pacientes bem ajustados que fizeram a transição física de um sexo para o outro com 11 ou 12 anos de idade, sugerindo que a “porta da identidade de gênero” pode permanecer aberta por muito mais que os primeiros 18 meses de vida.62  Parece que a porta está aberta às cirurgias de redesignação sexual em idade cada vez mais avançada. O que é mais importante do ponto de vista do feminismo de segunda onda é que a porta está aberta a um papel maior da escolha humana em relação à criação da identidade, ao conceito pessoal do eu e à ideia da fluidez de gênero independentemente do corpo.63

Algumas feministas da segunda onda endossaram a abordagem de Money porque suas ideias sobre feminilidade e masculinidade pareciam ser maleáveis e porque ela sugere que o corpo não implica um destino fixo. Essa aliança filosófica entre as feministas, por um lado, e Money e seus acólitos científicos, por outro, tinha um viés político também: poucas coisas erodem “a ideologia da supremacia do homem e a socialização tradicional” tanto quanto a problematização da base biológica da identidade.64

Judith Butler: a teoria queer, defesa da homossexualidade e direitos transgêneros

Nesta revolução contínua, os supostos insights de uma geração podem converter-se em obstáculo na geração seguinte. A mais importante crítica de terceira onda dessas alianças de segunda onda é Judith Butler.

Aqueles que se submetiam às cirurgias de redesignação sexual pensavam estar sendo inovadores, mas, para Butler, estavam apenas reforçando a tendência da sociedade a enxergar as pessoas como ou mulheres ou homens. Butler acha que essas cirurgias exigem “uma crítica séria e cada vez mais popular do dimorfismo de gênero idealizado dentro do próprio movimento transexual” –uma crítica que levará a um mundo em que “atributos genitais mistos poderão ser aceitos e amados sem que seja necessário transformá-los em uma noção de gênero mais socialmente coerente ou normativa”.65

Butler vincula a terceira onda feminista a avanços na teoria queer, defesa dos homossexuais e direitos dos transgêneros.66 A teoria queer reza que todas as expressões de gênero e sexualidade são socialmente construídas, logo, que pudem mudar, com a esperança de que festejar os estilos de vida supostamente queer vai solapar ou “problematizar” noções fixas sobre identidade pessoal e distinções rígidas.67 Merece destaque especial o modo como a sociedade separa os indivíduos em categorias binárias estanques de macho ou fêmea. A teoria queer localiza a libertação na transcendência do binário e do normal. Entre os que são libertados por meio da aceitação ampla da teoria queer estariam as pessoas transgênero, cujo conceito de si mesmas transcende as concepções supostamente normais de gênero, mas que não necessariamente reconfiguram seu corpo para adequar-se a essa concepção que fazem delas mesmas.

As feministas podem, no passado, ter se oposto à inclusão em seu movimento de pessoas homossexuais (“queer”), drags (homens vestidos de mulheres), butch (lésbicas masculinas), femme (lésbicas femininas) e transgêneros, porque essas pessoas solapavam a ideia da irmandade de mulheres, que garantia a coesão do movimento.68 De maneira semelhante, os primeiros ativistas homossexuais pareciam aceitar a ideia da orientação homossexual ou heterossexual como sendo embutida na composição genética das pessoas ou sendo de alguma maneira natural.

Butler e outras desta terceira onda aceitam o divórcio feminista entre sexo e gênero e a aspiração feminista de “transcender” ou “desfazer” o gênero. Segundo as teóricas da terceira onda, suas predecessoras feministas foram insuficientemente radicais, porque não rejeitaram o caráter binário do gênero e, em vez disso, simplesmente incentivavam as mulheres supostamente “imanentes” a atuar mais como homens “transcendentes”.

Para Butler, o próprio gênero é uma imposição, um ato de pseudoviolência integrado em nossa linguagem e nossas expectativas. Em sua visão, não existe gênero real, natural, nem existe uma expressão natural ou apropriada da sexualidade. Gênero e sexualidade são “performances” que nascem da vida comum e a constituem. Em sua compreensão das normas sociais, Butler se vale especialmente do filósofo pós-estruturalista francês Michel Foucault, que procura expor o poder político conforme ele se manifesta em nossas ideias de verdade, realidade e linguagem, todas as quais reforçam a visão de poder político do grupo dominante e implicitamente normalizam seu modo de vida. A sociedade exerce esse poder sutilmente, construindo a “verdade” e a “realidade”, e, com isso, constrói uma teoria sobre quais categorias se classificam como humanas. Muitas coisas sutis na sociedade, por exemplo, desde os ensinamentos religiosos à cultura popular, encorajam as pessoas a esperar relações amorosas entre homens e mulheres. Essas expectativas precisam ser expostas como sendo artificiais, para que possa nascer um futuro mais aberto e “queer”. Para usar a linguagem mais técnica de Butler, a História da Sexualidade, de Foucault, expõe o “mecanismo de coerção” que está por trás da preferência moderna pelo sexo heterossexual, na esperança de liberar uma expressão mais polimorfa do desejo sexual e, em última análise, novos engendramentos.69

Leslie Feinberg, cujo folheto “Transgender Liberation: A Movement Whose Time Has Come” (1992) provavelmente faz a primeira descrição completa do fenômeno transgênero, ecoa o relato de Betty Friedan da discriminação sofrida pelos transgêneros como sendo uma “opressão sem nome” porque está tão entranhada na cultura que aparenta ser normal. 70 O engendramento tem sido uma “violência” invisível que, nas palavras de Butler, “emerge de um desejo profundo de manter a ordem do gênero binário para que aparente ser natural ou necessário, de fazer dele uma estrutura, natural, cultural ou ambas as coisas, à qual nenhum ser humano pode se opor e ainda permanecer humano.”71

Desfazer o gênero requer o empoderamento daqueles que tecem fantasias sobre e realizam diferentes espetáculos de gênero, revelando possibilidades fluidas e transgressivas de novas realidades. Gender Trouble72 (Problemas de Gênero), de Butler, ressalta a natureza transgressiva do drag e do cross-dressing, enquanto o livro de Butler Undoing Gender acrescenta a categoria transgênero como a mais recente performance de gênero. “Quando alguma coisa [aparentemente] irreal alega ser real”, escreve Butler, “… algo além de uma simples assimilação nas normas prevalentes pode ocorrer e ocorre de fato. As próprias normas se abalam, exibem sua instabilidade e tornam-se abertas à ressignificação.”73

Assim, um feminismo mais desenvolvido integraria a teoria queer, porque os “queers” “lutam para reformular as normas” e postular “um futuro diferente para a própria norma”. Eles “nos levam a não apenas questionar o que real e o que ‘tem que’ ser, mas também nos mostram como as normas que regem as noções contemporâneas de realidade podem ser questionadas e como novos modos de realidade podem ser instituídos”, como esperam as feministas.74 Com novas possibilidades transgressivas, “um novo léxico legitimador da … complexidade de gênero” pode desenvolver-se no “direito, psiquiatria, teoria social e teoria literária”.75

Assim, o reconhecimento do transgenerismo é coerente com as premissas filosóficas do feminismo de segunda onda (isto é, a separação entre o corpo e a identidade da pessoa) e também fomenta as três metas políticas da revolução sexual articulada por Millett. Ele avança mais além do que foram as feministas de segunda onda porque o terreno conquistado por essas ativistas foi ganho, e novos campos aparecem abertos para ser conquistados.

Mas a liberdade das imposições e dos construtos da sociedade não é o bastante. Em um futuro de libertação transgênero, dizem os teóricos da terceira onda, mil gêneros vão florescer, porque o público vai reconhecer a legitimidade e até a beleza de todas as performances de gênero. “Não estamos conquistando um espaço para a autonomia”, escreve Butler, “se por autonomia queremos dizer um estado de individuação visto como algo que persiste por si só, anterior a e separado de quaisquer relações de dependência do mundo dos outros”. As pessoas “não podem persistir sem normas de reconhecimento” que apoiem sua persistência e reforcem sua saúde mental. Nossa identidade nunca será plenamente real ou plenamente nossa enquanto não for endossada em e por meio de as autoridades públicas e reconhecida enquanto tal por nossos concidadãos. “O próprio senso de ser uma pessoa está vinculado ao desejo de reconhecimento, e esse desejo nos coloca fora de nós mesmos, em um reino de normas sociais que não escolhemos completamente.”76

É difícil imaginar como o trabalho de desfazer o gênero poderia ser completado: ele parece exigir transformação social contínua, não apenas em nome da libertação de imposições passadas, mas também como uma maneira de assegurar o reconhecimento dos desejos de amanhã. Butler questiona se precisamos de normas para viver, mas todos os indivíduos precisam de reconhecimento e afirmação públicos de sua identidade para poderem continuar.

O argumento de Butler leva a uma defesa transgressiva do casamento homossexual. Longe de acolher os casais “virtualmente normais” numa cultura tradicional de casamento, Butler abraça o casamento homossexual porque ele gera problemas de gênero para o casamento. Ele combate o essencialismo e subverte as normas de gênero esperadas de heterossexualidade conjugal. Introduz novas realidades como o casamento aberto, com isso criando novas performances que possivelmente apontem para o destronamento do casamento como valor público importante e acabem com o reconhecimento legal do casamento. No longo prazo, pelo fato de subverter a norma antiga, o casamento homossexual pode afirmar as performances transgressivas. Abalar o reconhecimento público do casamento dessa maneira constitui um passo na direção da criação de um futuro mais aberto.77

Butler espera que assistir a incidentes envolvendo transgêneros produza um efeito subversor semelhante ao que é produzido pela observação de dois homens ou duas mulheres em uma relação conjugal. Seguindo essa lógica, banheiros e chuveiros públicos são baseados num conceito binário de gênero e funcionam como instrumentos de opressão daqueles que não se encaixam nas normas da sociedade. O apoio à participação de mulheres em esportes também parece ser baseado no mesmo tipo de essencialismo, de modo que encontrar um espaço para atletas transgêneros passa a ser um imperativo moral de igual importância. Afinal, a participação de mulheres em esportes se baseia na premissa aparentemente ignorante e equivocada de que elas são mulheres. Pessoas transgênero criam “problemas de gênero” para as noções contemporâneas de realidade e reivindicam afirmação e reconhecimento, para que aqueles antes considerados “irreais” possam ser acolhidos na raça humana.

Segundo Butler, o corpo não é nem um dado nem um limite: o limite de nossa identidade está em nossa capacidade de considerar a “fantasia”, que é “um filme interno que projetamos dentro do teatro interior da mente”.78 Uma nova política precisa “criar um mundo em que aqueles que entendam seu gênero e seu desejo de ser não normativos possam viver e prosperar não apenas sem a ameaça de violência vinda de fora, mas também sem o senso penetrante de sua própria irrealidade, que pode levar ao suicídio ou a uma vida suicida”.79

Poucos ativistas transgêneros são autoconscientemente teóricos queer pós-estruturalistas, assim como poucas feministas das décadas de 1960 e 1970 foram existencialistas inspiradas em Beauvoir. Mas seu ativismo os inclina na direção dessas teorias.

O ativismo transgênero começa com a ajuda de uma ciência que desconstrói, afirma que a saúde dos indivíduos é prejudicada pelas repressões da sociedade, e batiza uma síndrome psicológica da qual sofrem esses indivíduos.  A pedra angular científica dessa nova visão aceita é o transtorno conhecido como “disforia de gênero”80 , que parece provocar uma inquietação persistente e consistente do indivíduo em relação à sua identidade de gênero ou uma incongruidade entre seu sexo biológico e seu senso interno da vida como homem ou mulher. Nesse caso, um nome científico é atribuído a uma questão que em outras ocasiões tinha ficado sem nome.

Da perspectiva da teoria queer, essas reações são quase charmosas em sua adesão à relação tradicional entre sexo e gênero.81 Para os teóricos queer, aqueles que passam por confusão de gênero não devem ser curados – sua identidade deve ser afirmada e reconhecida. Quando uma criança que sofre de “disforia de gênero” chega à escola, não é questão de simplesmente pedir medidas de transição e tratamentos hormonais. Para os teóricos queer, essa criança chega com a exigência de que a escola e sua comunidade reconheçam e afirmem o status de gênero questionável dessa criança como sendo um fato permanente.

A experiência vivida na Nova Classical Academy, no Minnesota, em 2015, ilustra esse ponto. Um pai matriculou seu filho de 5 anos na escola. De acordo com o pai, a criança se enxergava como um menino que gostava de “coisas de menina”. O pai pediu que a escola apoiasse o aluno de gênero não conforme, adotando mudanças em seu currículo e suas políticas (entre outras coisas), e, sob pressão legal e pública, a escola atendeu ao pedido.82 Há muitas histórias de como profissionais em alguns Estados são impedidos de tratar a “disforia de gênero” como uma síndrome patológica que requer aconselhamento patológico e tratamento preventivo por parte dos pais. O objetivo final é o reconhecimento público da visão que a teoria queer tem da paisagem humana.

Conclusão

A teoria queer que conduz à reivindicação de reconhecimento público dos transgêneros compartilha muito com a visão inicial de Beauvoir de que a mulher se faz – ela não nasce mulher. Nas palavras de Butler, os teóricos transgênero “levam adiante o legado de Simone de Beauvoir: se a pessoa não nasce mulher, mas se torna mulher, então tornar-se é o veículo do próprio gênero”.83

Beauvoir e seus sucessores esvaziaram todo o significado do termo sexo e disseram que ele poderia ser preenchido com a construção humana de uma nova ideia da mulher.

Os teóricos queer concordaram e foram além, preenchendo o gênero mais livremente com base na imaginação e escolha individual, em lugar de dicotomias artificiais e outros resquícios de tradição. Tornar-se humano agora teria que decorrer da imaginação individual, não afetada pelas ideias de gênero socialmente impostas. Os teóricos queer empurraram uma porta que as feministas de segunda onda já haviam aberto. Com a teoria queer, os seres humanos chegam mais perto de ser, como Beauvoir afirmou, seres históricos, em lugar de uma espécie fixa.

A importância da formação da identidade, iniciada na reiteração do pensamento de Beauvoir feita por Friedan, também fomenta a importância dos direitos dos transgêneros. A identidade humana não é determinada por nossa biologia, nossos genes ou nossa criação – é um produto de como as pessoas se criam. Para essa visão, os seres humanos são pessoas não sexuadas que ocupam um corpo de um sexo ou do outro, sem qualquer necessidade de seguir roteiros de gênero previamente traçados. O filósofo Roger Scruton escreve: “Não existe exemplo mais vívido da determinação humana de triunfar sobre o destino biológico nos interesses de uma ideia moral”.84 Elevando a moralidade da imaginação humana e escapando do domínio ferrenho da construção do gênero – na prática, dois lados da mesma moeda –, os ativistas transgêneros fazem causa comum com as feministas na defesa da autonomia, da liberdade da necessidade biológica e da libertação humana.

Não existe melhor maneira de estender a revolução sexual imaginada pelas feministas da segunda onda que abalar a confiança na própria ideia de homem e mulher. Assim, as teorias transgênero são uma iteração tardia da meta feminista de uma revolução sexual que inclua a abolição da supremacia do homem e a socialização tradicional segundo roteiros de gênero, o cultivo da androginia, a eliminação da família proprietária e da dependência de mulheres e crianças da família, além do incentivo a experiências sexuais não monogâmicas e não conjugais. Ser de um gênero ou de outro é uma questão de imaginação humana, e novos tipos de gêneros podem ser imaginados: essas experiências são compatíveis com a revolução sexual contínua.

Assim, os direitos transgêneros ampliam as premissas filosóficas da segunda onda feminista e fomentam seu projeto político, ao mesmo tempo em que apontam para um mundo que não é exatamente o que aquelas feministas pensavam ser necessário em sua época. Resta a ver se esse novo mundo será capaz de fomentar o desenvolvimento humano.

Scott Yenor é professor de Ciência Política na Boise State University e entre 2015 e 2016 foi professor visitante de Pensamento Político Americano no Centro B. Kenneth Simon de Princípios e Política, do Instituto de Governo Constitucional da Fundação Heritage.

©2017 The Heritage Foundation. Tradução de Clara Allain. Original em inglês.

Referências

  1. David P. Barash, Out of Eden: The Surprising Consequences of Polygamy (New York: Oxford University Press, 2016), pp. 27–33 e 42–45; Steven E. Rhoads, Taking Sex Differences Seriously (San Francisco: Encounter Books, 2004), págs. 134–158.
  2. Barash, Out of Eden, págs. 60–72; Rhoads, Taking Sex Differences Seriously, págs. 48–54.
  3. Rhoads, Taking Sex Differences Seriously, págs. 168–173; Eileen McDonagh e Laura Pappano, Playing with the Boys: Why Separate Is Not Equal in Sports (New York: Oxford University Press, 2008), págs. 52–58.
  4. Barash, Out of Eden, págs. 113–126; Rhoads, Taking Sex Differences Seriously, págs. 190–204.
  5. Simone de Beauvoir, The Second Sex, tradução de H. M. Parshley (New York: Vintage Books, 1989), págs. 6 e 23.
  6. Charles Darwin, The Descent of Man (Amherst, NY: Prometheus Books, 1998), págs. 617–622.
  7. Edward O. Wilson, On Human Nature (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1978), págs. 139–140.
  8. W. F. Hegel, Elements of the Philosophy of Right, tradução de H. B. Nibet (New York: Cambridge University Press, 1991), parágrafo 166A.
  9. “A emancipação, como eu quero tratá-la, não é o desejo de igualdade externa com o homem, mas algo que é de real importância na questão da mulher, o anseio profundo de dotar-se do caráter de um homem, de chegar à sua liberdade mental e moral, de alcançar seus interesses e seu poder criativo reais. Afirmo que o elemento feminino real não possui nem o desejo nem a capacidade de emancipação nesse sentido. Todas as que lutam por essa emancipação real, todas as mulheres que são verdadeiramente famosas e possuem capacidade mental conspícua, ao primeiro olhar de um especialista revelam alguns dos traços anatômicos do macho, alguma semelhança corporal externa com o homem. Essas chamadas ‘mulheres’ que foram citadas por defensores dos direitos das mulheres como objetos de admiração no passado e no presente, apontadas como exemplos do que as mulheres são capazes de fazer, quase invariavelmente são o que descrevi como formas sexualmente intermediárias.” Otto Weininger, Sex and Character (Londres: William Heinemann; Nova York: G. P. Putnam’s Sons, 1906), pág. 65.
  10. Christina Villegas, “The Modern Feminist Rejection of Constitutional Government,” Heritage Foundation First Principles Report Nº. 60, 8 de agosto de 2016, págs. 2–4, http://report.heritage.org/fp60.
  11. John Stuart Mill, “The Subjection of Women,” in The Collected Works of John Stuart Mill (Toronto: University of Toronto Press, 1963–1991), Vol. 21, p. 271.
  12. Ibid., págs. 297–298.
  13. Indicando a proximidade entre elas e radicais americanas, Beauvoir nomeia Betty Friedan, Kate Millet, Germaine Greer e Shulamith Firestone como suas sucessoras dignas na luta pela criação de uma sociedade genuinamente liberada. Ver Alice Schwarzer, After the Second Sex: Conversations with Simone de Beauvoir, tradução de Marianne Howarth (New York: Pantheon, 1984), págs. 39 e 46. Firestone, por exemplo, a mais radical e profunda dessas pensadoras subsequentes, dedica The Dialectic of Sex a “Simone de Beauvoir, que perdurou”, elogiando e citando Beauvoir ao longo de sua análise. Nesta, ela descreve Beauvoir como a teórica feminista “mais abrangente e de grande alcance”, que relacionou o feminismo “às melhores ideias de nossa cultura”. Ver Shulamith Firestone, The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution (New York: Farrar, Straus and Giroux, 1970), pág. 8. Nas palavras de uma de suas admiradoras, a própria Firestone foi “a Simone de Beauvoir americana”. Ver Susan Faludi, “Death of a Revolutionary,” The New Yorker, 15 de abril de 2013, http://www.newyorker.com/magazine/2013/04/15/death-of-a-revolutionary (acessado em 26 de abril de 2017).
  14. “Devemos observar apenas que as variedades de comportamentos relatados não são ditados à mulher por seus hormônios nem predeterminados na estrutura do cérebro feminino: são moldados por sua situação, como que em um molde.” Beauvoir, The Second Sex, pág. 597. “As peculiaridades que a identificam como especificamente uma mulher ganham importância pelo significado que lhes é atribuído. Poderão ser superadas no futuro, quando forem vistas sob novas perspectivas.” Ibid., pág. 727. “O fato é que a resignação dela não decorre de nenhuma inferioridade predeterminada: pelo contrário, é o que dá lugar a todas suas insuficiências. Essa resignação tem sua origem no passado da menina adolescente, na sociedade que a cerca e, especialmente, no futuro que lhe é atribuído.” Ibid., pág. 329.
  15. Ibid., págs. ixx e 267.
  16. Ibid., págs. 280 e 288.
  17. Ibid., págs. 330–335; Kate Millett, Sexual Politics (Chicago: University of Chicago Press, 1970), págs. 28–29.
  18. Beauvoir, The Second Sex, págs. 307–315 e 321.
  19. Ibid., págs. 188ff. e 548–553.
  20. Ibid., págs. xxxiv–xxxv.
  21. Ibid., págs. 33–34. Ver também pág. 716: “A humanidade é algo mais que uma simples espécie: ela é um desenvolvimento histórico. Ela será definida pelo modo como lida com suas características naturais, fixas.”
  22. Ibid., págs. xxxv e 714.
  23. Ibid., págs. 387–390.
  24. Ibid., págs. 322–327, 352, 359 e 391.
  25. Schwarzer, After the Second Sex, p. 48.
  26. Ibid., p. 40.
  27. Beauvoir, The Second Sex, págs. 451–459 e 477–478.
  28. Ibid., págs. 471 e 476.
  29. Sobre a ambiguidade em relação a se todos ou apenas a maioria dos aspectos da sexualidade são socialmente construídos, ver Scott Yenor, Family Politics: The Idea of Marriage in Modern Political Thought (Waco, TX: Baylor University Press, 2012), pág. 192. Algumas indicações sutis no trabalho de Beauvoir apontam para uma possível consciência de que seu projeto não é inteiramente viável. O sexo requer um corpo, e a questão de como o sexo pode ser livre ou imanente provavelmente envolve um mistério e uma concessão. Beauvoir diz, por exemplo, que “cada existência humana envolva transcendência e imanência ao mesmo tempo”. Beauvoir, The Second Sex, pág. X. Em outras palavras, Beauvoir talvez acredite na existência de limites à revolução que ela anuncia.
  30. Beauvoir, The Second Sex, pág. 697.
  31. Ibid., pág. 263.
  32. Betty Friedan, It Changed My Life: Writings on the Women’s Movement (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1998), págs. 387–388.
  33. Betty Friedan, The Feminine Mystique (New York: Norton, 1997), págs. 22, 31, e 27.
  34. Ibid., pág. 336.
  35. Ibid., págs. 71 e 77.
  36. Ibid., pág. 31.
  37. Ibid., pág. 334.
  38. Ibid., págs. 316–317 e 322, citando as obras publicadas e inéditas de Abraham Maslow.
  39. Abraham H. Maslow, Motivation and Personality (New York: Harper, 1970), pág. 150.
  40. H. Maslow, “Dominance, Personality, and Social Behavior in Women,” Journal of Social Psychology, Vol. 16, Issue 2, 1942, pág. 3.
  41. Maslow, Motivation and Personality, pág. xvii.
  42. Ibid., pág. xii. Ver também pág. 46: “O que um homem pode ser, ele precisa ser … Podemos chamar essa necessidade de realização pessoal. … Ela diz respeito ao desejo do homem de cumprir seus ideais, ou seja, a tendência de ele realizar o que é potencialmente. Essa tendência poderia ser articulada como o desejo de tornar-se cada vez mais o que se é idiossincraticamente, de a pessoa tornar-se tudo que ela é capaz de se tornar.” Ênfase no original.
  43. Friedan, The Feminine Mystique, págs. 322–326.
  44. Algumas evidências científicas recentes citadas por Friedan parecem substanciar essas conclusões: alguns estudos supostamente mostram que mulheres autônomas ou emancipadas (em oposição às que se rendem à mística feminina) são mais felizes e têm mais orgasmos, além de orgasmos mais profundos, enquanto outros indicariam que há menos relacionamentos conjugais infelizes entre mulheres com nível de ensino superior. Ver Ibid., págs. 319ff., (o estudo de Maslow com 130 mulheres); 327–329 (o estudo sexual de Kinsey); 329ff.
  45. Ibid., pág. 320.
  46. Millett, Sexual Politics, págs. 26 e 33–58.
  47. Ibid., pág. 62.
  48. Firestone, The Dialectic of Sex, pág. 142.
  49. Ibid., pág. 119. Ênfase no original.
  50. Millett, Sexual Politics, pág. 62.
  51. Schwarzer, After the Second Sex, pág. 39.
  52. Firestone, The Dialectic of Sex, págs. 204, 114–115.
  53. Ibid., págs. 87–93 e 187. Beauvoir endossa a análise inteira de Firestone, presumivelmente incluindo sua nova visão da sexualidade infantil. Ver também Michel Foucault, The History of Sexuality, Volume I: An Introduction, tradução de Robert Hurley (New York: Vintage Books, 1980), págs. 27–30 e 104–112. Foucault enxerga as proibições da sexualidade infantil como construtos sociais que visam fomentar as finalidades de um sistema familiar antigo e intensificar artificialmente a importância da sexualidade para a identidade da pessoa. Parece haver um futuro libertador em que tais tabus serão menos cuidadosamente ensinados.
  54. Millett, Sexual Politics, pág. 62. Ver também Firestone, The Dialectic of Sex, págs. 236–237.
  55. Beauvoir, The Second Sex, pág. xxxv.
  56. Germaine Greer, The Female Eunuch (New York: McGraw Hill, 1971), págs. 18–19; ver também Millett, Sexual Politics, págs. 30–31, e Beauvoir, The Second Sex, págs. 10–11 e 404.
  57. Robert J. Stoller, Sex and Gender: The Development of Masculinity and Femininity (New York: Science House, 1968), págs. viii–ix.
  58. Ibid., pág. 48. Stoller faz referência a John Money, “Psychosexual Differentiation”, em Sex Research, New Developments, ed. John Money (New York: Holt, Rinehart, and Winston, 1965), pág. 12: “A condição presente no nascimento e por vários meses seguintes é um de indiferenciação psicossexual. Assim como ocorre no embrião, a diferenciação sexual morfológica passa de um estágio plástico para um estágio de imutabilidade fixa – tanto assim que a humanidade tradicionalmente presumiu que um senso tão forte e fixo quanto o da identidade sexual pessoal deve derivar de algo inato, instintivo e não sujeito à experiência e aprendizagem pós-natal. O erro dessa premissa tradicional consiste em haver subestimado o poder e a permanência de algo aprendido.”
  59. John Money e Patricia Tucker, Sexual Signatures: On Being a Man or a Woman (Boston: Little, Brown, 1976), pág. 95.
  60. Ibid., pág. 98.
  61. John Colapinto, As Nature Made Him: The Boy That Was Raised as a Girl (New York: Harper, 2006).
  62. Money e Tucker, Sexual Signatures, págs. 101ff.
  63. Money e Tucker viram o trabalho pioneiro dele como sendo ligado a ganhar aceitação para outros “pioneiros das transformações” sexuais, incluindo grupos de defensores da libertação que desmontam os estereótipos de gênero anteriores. Os mais destacados entre eles são os defensores da libertação das mulheres, que lutam contra a discriminação salarial e procuram escapar da dependência passiva típica da feminilidade à moda antiga; os transexuais, que lutam para ser aceitos como pessoas com a identidade de gênero de homens, mas que estiveram presos dentro de um corpo de mulher (ou vice-versa); pioneiros casados que praticam o casamento aberto e outras práticas que “transcendem a monogamia”, e os jovens, que ousam experimentar aventuras sexuais que fogem da tradição, sem envergonhar-se disso. Ibid., págs. 186–229.
  64. Millett, Sexual Politics, pág. 62.
  65. Judith Butler, Undoing Gender (New York: Routledge, 2004), págs. 64–65. Ver também Susan Stryker, “(De)Subjugating Knowledge: An Introduction to Transgender Studies”, em The Transgender Studies Reader, ed. Susan Stryker e Stephen Whittle (New York: Routledge, 2006), pág. 1.
  66. Susan Stryker vê a “onda de estudos acadêmicos sobre transgêneros” como “parte de um movimento intelectual queer mais amplo”. Stryker, “(De)Subjugating Knowledge,” pág. 1 (e, mais amplamente, págs. 3–7).
  67. David M. Halperin argumenta: “Queer é qualquer coisa que discorde do normal, do legítimo, do dominante. Não há nada de particular ao qual o termo se refira necessariamente. Trata-se de uma identidade sem uma essência.” Ver David Halperin, Saint Foucault: Towards a Gay Hagiography (New York: Oxford University Press, 1995), pág. 62. Ênfase no original.
  68. Janice Raymond, The Transsexual Empire: The Making of the She-Male (Boston: Beacon Press, 1979), Capítulos 2 e 3.
  69. Foucault, The History of Sexuality, Volume I, págs. 36–49.
  70. Leslie Feinberg, “Transgender Liberation: A Movement Whose Time Has Come” (New York: World View Forum, 1992), pág. 6.
  71. Butler, Undoing Gender, p. 35. Eve Kosofsky Sedgwick, em Epistemology of the Closet (Berkeley: University of California Press, 1990), argumenta que as dicotomias no mundo sexual, como natural/artificial, gay/hetero, no armário/assumido e masculino/feminino são produtos arbitrários recentes de nosso regime sexual burguês.
  72. Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (New York: Routledge, 2006).
  73. Butler, Undoing Gender, págs. 27–28.
  74. Ibid., págs. 26 e 28–29.
  75. Ibid., pág. 31.
  76. Ibid., págs. 32 (ênfase no original) e 33. Ver também em ibid., pág. 8, sua afirmação de que “uma vida vivível requer vários graus de estabilidade” e que “uma vida para a qual não existem categorias de reconhecimento não é uma vida vivível.”
  77. Para esses argumentos, ver, entre outros, Martha Fineman, The Autonomy Myth: A Theory of Dependency (New York: The New Press, 2004), págs. 105–108 e 134–136; Richard D. Mohr, The Long Arc of Justice: Lesbian and Gay Marriage, Equality and Rights (New York: Columbia University Press, 2005), pág. 69ff.; e Ann Ferguson, “Gay Marriage: An American and Feminist Dilemma,” Hypatia: A Journal of Feminist Philosophy, Vol. 22, No. 1 (2007), especialmente pág. 51.
  78. Butler, Undoing Gender, pág. 217.
  79. Ibid., pág. 219.
  80. “Gender Dysphoria”, in Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition, ed. American Psychiatric Association (Arlington, VA: American Psychiatric Publishing, 2013), pág. 452.
  81. Butler aconselha as pessoas a pedirem um diagnóstico de disforia de gênero “em espírito irônico ou espirituoso”, para receber o atendimento médico se for isso o desejado, mas rejeitar a implicação de que a disforia de gênero seria uma patologia que necessita ser corrigida. A “autonomia”, e não a patologia, é o padrão pelo qual julgar as escolhas apropriadas. Butler, Undoing Gender, págs. 82ff. e 87.
  82. Katherine Kersten, “Transgender Conformity,” First Things, Dezembro 2016, https://www.firstthings.com/article/2016/12/transgender-conformity (acessado em 27 de abril de 2017).
  83. Butler, Undoing Gender, pág. 65.
  84. Roger Scruton, Sexual Desire: A Philosophical Investigation (New York: Continuum, 2006), pág. 274.