10 anos da violência no Couto Pereira

MEMORIAL DA PANDEMIA

Histórias
Abreviadas

Lembrar dos que se foram, viver o luto, enfrentar a perda. Conheça histórias marcantes de vítimas da Covid-19

Reportagem: Marina Pilato

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Enquanto provocava distanciamento físico, a pandemia de Covid-19 aproximou de todos a ideia da morte. Nesses 17 meses, o sentimento foi o de um cerco se fechando a cada aumento de casos, a cada conhecido internado, a cada falecimento na vizinhança. Para milhares de pessoas, a dor da perda de uma pessoa importante acabou se concretizando. No Paraná, que já passa das 35 mil mortes pela doença, multiplicam-se as trajetórias abreviadas precocemente e as famílias reduzidas, muitas vezes com o falecimento de vários familiares em um curto espaço de tempo.

Uma maneira coletiva de tentar buscar alento em um momento assim é mostrar rostos e histórias dessas mortes. O site Inumeráveis é uma iniciativa com esse intuito. Construída por voluntários, a página forma um memorial dedicado à história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil, dando nomes e contando desde grandes feitos até características pessoais que tornavam todos que estão ali especiais. O especialista em luto e professor de Psicologia da PUC-PR, Cloves Antonio de Amissis Amorim, considera ações como essa de extrema importância na pandemia. “Quando a sociedade perde uma pessoa pública, ela vira nome de rua, por exemplo. É importante que, em perdas coletivas e dentro do possível, a comunidade encontre uma via para manifestar sua gratidão”, explica.

Maria Vilma e Ubaldo Paolin

Ausência sentida coletivamente

Líderes comunitários da Caximba

De abril a agosto deste ano, o bairro Caximba, na região Sul de Curitiba, mantém o posto de bairro mais impactado pela pandemia de Covid-19. Lá, quase 25% dos moradores já foram diagnosticados com o vírus, de acordo com dados do Monitor COVID-19 do portal O Expresso. Como comparativo, a média de contaminação no restante da capital é de 13%. Em um bairro que vive de forma tão intensa a onda de vidas perdidas, duas delas extrapolaram os círculos familiar e de amigos e afetaram a comunidade como um todo. Maria Vilma e Ubaldo Paolini eram líderes comunitários há décadas e mantinham os portões de casa sempre abertos para ajudar a população. O casal de 78 e 90 anos, respectivamente, faleceu no dia 28 de maio, com apenas uma hora e meia de diferença.

Vilma e Ubaldo foram vetores de conquistas públicas como pavimentação de ruas e instalação de centros de assistência social, de saúde, de educação infantil, entre outros. Apesar de não terem ingressado na política, os dois transitavam entre figuras públicas na busca por direitos à população de um local que muitas vezes foi colocado para escanteio, marcado por um antigo aterro sanitário. Meses após as mortes, a neta Carolina do Rosário Paolini ainda recebe mensagens de desconhecidos relatando as benfeitorias feitas pelos avós. “É engraçado porque, além de nós, netos de sangue, parece que eles deixaram muitos outros netos, porque todo mundo via eles como vô e vó”, comenta.

Como legado, fica o constante trabalho da Associação de Moradores e Amigos do Bairro Caximba, da qual Vilma foi presidente, na busca por melhorias. Além disso, a família carrega o gosto pela atuação solidária em outras iniciativas sociais.

Reimackler Alan Graboski

Famílias de pacientes perdem porto seguro

Cirurgia plástica de fissura labiopalatal perde referência

“Você precisa ver a coisa maravilhosa que ficou”, com os olhos brilhando de alegria, era assim que o médico Marco Aurélio Lopes Gamborgi descrevia aos colegas o procedimento cirúrgico que havia acabado de concluir em crianças com fissuras labiopalatais, especialidade do cirurgião plástico com 30 anos de experiência. Ele chamava os atendidos de “pacientezinhos” e dedicava tanto a eles quanto às famílias uma atenção tão necessária quanto rara, já que o procedimento precisa ser minucioso e deixa marcas definitivas. Assim, a cada nova cirurgia, ganhava uma dúzia de fãs eternos.

Seu falecimento, no dia 4 de dezembro do ano passado, aos 57 anos, fez lamentar não apenas a comunidade médica, que o tinha como referência na área, mas centenas de famílias que encontraram nele um porto onde depositavam confiança no futuro saudável das crianças. Atuante no Centro de Atendimento Integral ao Fissurado Lábio Palatal (Caif), seu “quartel-general”, no Hospital Pequeno Príncipe e no Centrinho Prefeito Luiz Gomes, em Joinville (SC), operou centenas de crianças principalmente pelo SUS. Além disso, algumas vezes ao ano realizava uma maratona de cirurgias em pequenos moradores do Norte do país, em locais sem acesso a esse tipo de serviço de saúde.

Marco Aurélio foi o 21º médico paranaense a falecer de Covid-19.

Pereira

Antes de chegar sua vez

Alfabetizadora dedicada morre pouco antes de receber a vacina

Uma ausência repetida em dezenas de casas ao mesmo tempo, sentida por crianças, que talvez não precisassem saber tão cedo o que é a morte de um alguém próximo. Cristina Rodrigues de Almeida, 47 anos, era professora da Rede Municipal de Ensino de Curitiba e de Pinhais, especializada em alfabetização e apaixonada pelo trabalho. Passava horas além do expediente preparando materiais que uniam aprendizagem e entretenimento, tudo balizado pela técnica atualizada com frequência por ela. O reconhecimento vinha na forma de assimilação rápida das letras e números pelos pequenos e no agradecimento dos pais pela atenção dedicada. As colegas professoras brincavam que se uma pedra fosse colocada na sala com Cristina, a pedra sairia dali lendo e escrevendo.

A pandemia impôs reinvenção no modo de educar. Cristina tirou de letra. Sentia saudades, sim, do contato em sala de aula, mas utilizou a tecnologia a seu favor e seguiu sendo um prodígio na alfabetização mesmo através de telas. Entregava sacolas com o divertido alfabeto, recolhia atividades e distribuía bonecos que ela mesma fazia. Também foi por telas que os pequenos demonstraram seus sentimentos pela perda da professora. Ela faleceu este ano, próximo das celebrações juninas e da data em que finalmente chegaria a sua vez de se vacinar. Em uma reunião virtual junina da escola, foi aberto espaço para que os alunos falassem sobre a professora. Por vontade própria, muitos, com a inocência infantil de se expressar, se entristeceram com a falta dela. Além disso, na missa online em memória da educadora, praticamente todas as famílias de alunos da sala em que ela dava aula participaram.

João Carlos Vialle

Não conheceu a filha recém-nascida

Professora morreu após dar a luz e virou nome de rua em Colombo

Daiana Stefhane Costa da Silva, 33 anos, sequer teve consciência de que a filha que esperava nasceu. Ela deu Catarina Vitória à luz em 3 de dezembro, aos sete meses de gestação, um dia depois de ser entubada por conta de complicações da Covid-19. Apesar do esforço generalizado da equipe médica em realizar a cesárea de emergência, tratar de Daiana e do bebê prematuro na UTI e buscar reação da mãe através - na internação, áudios do batimento cardíaco de Catarina e do depoimento de apoio gravado pela ídola Sandy eram tocados - Daiana faleceu menos de um mês depois do parto.

O marido Helton da Silva, casado com Daiana desde 2017, lembra da angústia de ficar isolado em casa, pois também estava com coronavírus, porém sem sintomas graves, enquanto o estado da esposa se agravava e a filha nascia. “Só conheci a Catarina oito dias depois do nascimento”, lamenta. O novo pai encontra nos cuidados com a filha forças para passar pelo sofrimento da perda. “Eu acho que ela estaria orgulhosa de mim. Antes não sabia trocar uma fralda, hoje tudo é comigo. Estamos seguindo para fazer o melhor pela vida da Catarina”, relata. Como forma de homenagem, foi decretado pelo município de Colombo que uma rua do bairro São Gabriel receba o nome de Rua Professora Daiana Stefhane Costa da Silva. Em Curitiba, tramita na Câmara de Vereadores uma proposta para que um CMEI na capital também seja batizado assim.

Ana Luzia Mikos

Perdeu metade da família

Em 17 dias, pontagrossense vê metade de sua família ser levada pela Covid-19

“É como se o mundo tivesse caído no meu colo”, resume a professora pontagrossense Tallyta Cerqueira, que viu a mãe, o pai e a avó pereceram devido ao coronavírus em março deste ano, mês em que o Paraná registrou o maior número de mortes em toda a pandemia. A dor sem precedentes é atropelada pela necessidade de resolver questões práticas decorrentes das mortes. Tallyta, que contava com o apoio incondicional da família, se viu sem ter a quem recorrer no momento mais difícil da vida. “Foi uma rasteira, perdi metade da minha família de uma vez”, lamenta.

A professora encontra forças para seguir na criação do filho, além de fazer acompanhamento psicológico desde que tentou retornar ao trabalho após os falecimentos e sofreu um ataque de pânico no segundo dia na escola. Sem querer, ela se tornou inspiração de luta para outras milhares de pessoas que estiveram em situação parecida durante a pandemia. Quando foi vacinada, semanas após as mortes, mostrou uma placa com as datas de falecimento dos familiares e a mensagem “A vida não espera” #VacinaSim”. A imagem, postada nas redes sociais dela, acabou rodando o país. Tallyta sentiu a solidariedade de pessoas que nem conhecia, recebeu e ainda recebe relatos emocionados de quem também perdeu entes queridos para o vírus. “Acredito que essa acabou se tornando a minha missão, para de alguma forma ajudar a conscientizar e tocar o coração das pessoas que não estão levando isso [a pandemia e a vacinação] a sério”, conclui.

Um luto nunca presenciado

Estudiosos da Psicologia dizem que o luto é tão individual quanto uma impressão digital. Mas quão diferente é esse luto incompleto da pandemia, em que parece não haver tempo hábil para processar um acontecimento triste, já que todo o contexto é de tragédia? A professora do Departamento de Psicologia da UFPR e coordenadora do Projeto de Extensão Luto, Vivências e Possibilidades, Joanneliese de Lucas Freitas, complementa que é um momento especialmente difícil para quem está enlutado por Covid-19, pois além das restrições relacionadas ao isolamento social, há a constante lembrança - nas notícias, nas redes sociais, nas conversas virtuais - da causa da morte da pessoa querida.

“Na pandemia, as pessoas ficam massacradas por esse assunto, sempre lembrando da morte e do sofrimento. É importante que o enlutado encontre um jeito de fazer e pensar em outras coisas”, explica. Há dez anos a UFPR acompanha enlutados e, com a pandemia, em outubro começaram a ser organizados grupos de no máximo dez pessoas específicos para o luto por coronavírus. Até agora, cerca de cem pessoas participaram do trabalho, que é coordenado por Freitas. “São grupos de acolhimento com relatos de experiência. O foco é trabalhar os laços e a identificação, algo muito importante no luto, mesmo que a pessoa não consiga participar de um grupo para isso”, comenta. Nas redes sociais do projeto - Luto Psicologia UFPR - é possível acessar cartilhas de apoio e saber quando há abertura de novos grupos para inscrição.

Tarefas do Luto

Amorim explica que os teóricos trabalham hoje com quatro tarefas, definidas por Colin Parkes, uma das maiores autoridades vivas em luto, que os enlutados devem tentar realizar para conseguir seguir a vida mesmo com a ausência de alguém querido:

  1. 1 Aceitar a realidade da perda: Conseguir falar da pessoa que se foi no passado, usar a palavra morte para se referir ao que aconteceu.
  2. 2 Processar a dor do luto: É até cultural usar meios para impedir que a pessoa viva esse sofrimento, utilizando medicamentos calmantes por muito tempo. Porém, inevitavelmente ela vai ter consciência plena desse momento e vai precisar processar.
  3. 3 Ajustar-se a um mundo sem a pessoa morta: Desde aprender a realizar as atividades que antigamente fazia com a pessoa, como passear com o cachorro, até relembrar quem é o seu verdadeiro eu, fazendo perguntas como “Estou diferente agora?” e “Quem sou eu agora?”.
  4. 4 Encontrar conexão duradoura com a pessoa morta em meio ao início de uma nova vida: Entender que agora a pessoa não vive mais fora de quem a perdeu, e sim dentro. Reencontrar esse lugar adequado e perceber que aquela pessoa agora vive em seu interior.

Expediente

Reportagem: Marina Pilato. Edição: Marcos Tosi. Imagens: Acervo pessoal das famílias. Design: Osvalter Urbinati.