Dia das mulheres, 8 de março
Lugar de mulher é na arquibancada
A presença feminina nos estádios é cada vez mais representativa. A paixão pelos times, aliada à vontade de debater, e combater, o machismo, reúne gerações de torcedoras. Baixa representatividade nos clubes, preconceito e assédio ainda são desafios a enfrentar. A luta pelo espaço, que já dura décadas, ainda está longe de acabar.
Reportagem: Juliana Fontes. | Edição: André Pugliesi. | Publicado em: 08/03/2020
Luta que não acaba
Olhares de reprovação, respostas com desprezo e até manifestações de ódio gratuito. São situações vividas por mulheres que gostam de falar sobre futebol e frequentar os estádios. Essa realidade não é diferente do que algumas personagens da matéria vivem no dia a dia.
A pesquisadora Carolina Farias Moraes, autora de “As torcedoras querem (poder) torcer”, dissertação de Mestrado pela Universidade Federal da Bahia, estudo apresentado em 2018, acredita que o tema é urgente.
“As arquibancadas refletem o contexto cultural da sociedade. Especificamente dentro do estádio, temos um cenário em que o homem sempre entendeu como exclusivo, para seu momento de diversão. Quando a mulher entra, e tenta se fixar, ela encara um lugar que era muito fechado”, comenta a pesquisadora.
Torcedora do Coritiba, Giuliana Souza, 21 anos, lembra o quanto é difícil validar sua voz, até mesmo em um círculo social em que já está inserida. Para a coxa-branca, a opinião da mulher não tem credibilidade no meio, só por ser de mulher.
“Os homens têm validação para falar qualquer coisa. Se ele tem qualquer opinião esquisita, pode falar. Porém, se fizermos algum comentário, até mesmo em família, a impressão é que não somos ouvidas, reclama Giuliana, estudante de Psicologia.
Ativa nas redes sociais, a torcedora do Coxa relata que já foi alvo inúmeras vezes de ódio gratuito. O mesmo caso de Gabrielle Bizinelli, 28 anos, administradora paranista.
“Muitas pessoas têm a cabeça fechada e, quando percebem que você tem conhecimento para argumentar e defender uma ideia, passam a te xingar. Quase toda semana recebo palavrões inacreditáveis na internet. Claro, há homens que são abertos ao diálogo. Mas ainda há um caminho longo”, afirma Gabrielle.
Izabela Lima, 32 anos, advogada e atleticana, apresenta outra realidade:
“No meu caso, tenho amigos homens que me perguntam se prefiro o sistema tático 4-4-2, 3-5-1-1, o que acho de determinado jogador, do técnico. Sou a única mulher de um grupo de amigos no Cartola. Eu me sinto super ouvida”.
A pesquisadora Carolina enxerga como crescente a participação feminina dentro das praças esportivas, assim como o engajamento das torcedoras.
“Do ponto de vista científico, elas sempre estiveram lá, mas nunca foi pensado como agora. As mulheres vão cada vez mais se organizando para serem vistas, respeitadas. É um caminho sem volta”, aponta.
Em nome do Tricolor. E do pai
Nem sempre as mulheres puderam ocupar o futebol. Clelia Albanus, 68 anos, é um exemplo de como foi preciso derrubar padrões para ir aos estádios. Filha de um pai rígido, preso aos costumes da época, desde criança a paranista era encantada por futebol, mas nunca teve permissão para ver de perto o jogo.
“Meu pai achava que estádio não era lugar para mulher. Para eu acompanhar meu time era apenas na base do radinho e, tempos depois, pela televisão”, conta a psicóloga aposentada.
Com sangue tricolor nas veias, Célia se emociona ao lembrar de um dos momentos mais felizes da vida. Um ato que pode parecer simples nos dias de hoje, mas libertador em sua existência.
“Em agosto de 1998, meu pai faleceu e, logo em seguida, decidi assistir a um jogo no estádio. Fui ao Pinheirão ver Internacional e Paraná. Fui sozinha, eu já tinha 47 anos. Comprei ingresso no setor social e tremia. Ganhamos por 2 a 1. Rezei para meu pai, pedi perdão, e sei que ele entendeu. Senti que era livre”, revela.
Cumprindo com a promessa, Clelia, que tem raízes no Colorado, clube antecessor do Paraná, desde então acompanha o Tricolor. Debaixo de sol ou chuva, na Vila Capanema, onde for.
“Fico na Reta do Relógio e ali tenho uma família. É só eu chegar que já vão chamando: Dona Clelia, Dona Clelia. Ali é meu lugar. Ali eu esqueço qualquer problema. Eu amo futebol”, arremata.
Também experientes na bancada, Elvira Sampaio, atleticana, e Célia Sagaz, coxa-branca, viveram situações distintas. Puderam desfrutar do futebol desde crianças. Mas admitem que foram privilegiadas.
“Meu pai sempre foi de vanguarda. Ele levava as filhas no futebol. A minha lembrança de menina era da festa de arquibancada. Algo forte que me recordo é ver apenas minha irmã e eu de meninas na arquibancada”, relembra a professora Elvira, que prefere não revelar a idade.
“Mulher no estádio era difícil. Os pais levavam os meninos e nós não podíamos nem brincar com bola. Mas meu pai, desde quando eu era pequena, na década de 1960, me levava. Olhavam torto. Hoje vejo as mulheres mais presentes e se impondo”, conta Célia, 65 anos.
Dentro do estádio. Fora da política
A baixa representatividade na vida política dos clubes, como sócias ou conselheiras, incomoda as torcedoras. Para as mulheres, além de ocupar a arquibancada, é fundamental ganhar espaço na rotina dos clubes do coração.
“É importante ter representatividade na política. Simples ações que poderiam ser feitas demonstrariam que todos são bem-vindos. Hoje não sentimos isso”, aponta Giuliana Souza, coxa-branca.
Izabela Lima reforça diz que as torcedoras são lembradas apenas em datas comemorativas, como o Dia Internacional da Mulher. Não há ações contínuas e eficientes.
“Gostaria que os clubes tomassem medidas para conscientizar os homens que o espaço também é das meninas. Isso vai muito além de nos oferecer uma rosa, ou de fazer uma publicação no Facebook”, pondera a atleticana.
Na opinião de Elvira Sampaio, o ideal seria contar com um quadro igualitário nos conselhos. A atleticana, entretanto, sabe que o equilíbrio esbarra na proporção no número de sócias.
“Acredito que uma primeira medida seria tornar proporcional o número de sócias. Era algo que encantaria as mulheres, entender que podem fazer parte das decisões do clube”, sugere.
E no futuro ter uma presidente à frente do clube seria um passo natural. Algo, entretanto, que parece longe de se realizar.
“É uma mudança de comportamento de longo prazo. Mas é preciso persistir. É um direito nosso. Eu não sei se eu vou ver, mas acredito que ainda teremos uma mulher como nossa líder, presidente do clube”, imagina a paranista Clelia.
As mulheres na política do futebol de Curitiba em 2020
*Conselho Deliberativo
Meu estádio. Minha casa
Giuliana Souza, 21 anos, herdou o amor pelo futebol de outra mulher. O núcleo familiar da coxa-branca é composto pela mãe, Maria de Fátima, e pela irmã, Carol. E foi dessa união que o Coritiba virou ritual. As três vivem o time e largam qualquer compromisso para ir ao Couto.
“Em uma família só de mulheres talvez a última coisa que fosse presente fosse o futebol. Aconteceu justamente o contrário. Tenho orgulho da minha mãe e da força que ela representa. Desde sempre, percebi que mãe levar as filhas ao futebol não era comum. Isso faz admira-la ainda mais”, exalta Giuliana.
O Alto da Glória é a casa das Souza: “Desde que me conheço por gente tenho memórias dentro do Couto. Um vínculo que foi crescendo e em 2011 nos tornamos sócias. Vamos a absolutamente todos os jogos do Coxa. É algo forte”, conta a coritibana.
A atleticana Izabela Lima, 32 anos, e a paranista Gabrielle Bizinelli, 28 anos, igualmente viram os portões dos estádios sempre abertos. Mesmo que sozinhas. Porém, mesmo que se sintam à vontade nas arquibancadas, encaram a realidade.
“Ao contrário do que pensam, que estádio é lugar de homem, precisamos entender que é lugar para quem quiser. É importante lutar por esse espaço e se fixar nele”, avalia Izabela, advogada que herdou a paixão pelo Furacão dos tios e, desde os nove anos, frequenta a Baixada.
“A desconstrução é diária. Até porque há mulheres que foram criadas em ambientes machistas e que não sabem que podem ter seu espaço. Temos que todo dia debater. Com argumentos para refletir o quanto atitudes machistas machucam”, enfatiza Gabrielle, presente na Vila Capanema ainda na barriga da mãe.
Reunidas. E mais fortes
Nas arquibancadas pelo Brasil crescem os movimentos femininos na luta contra o ambiente machista do futebol. Em 2017, foi realizado o primeiro encontro nacional “Mulheres de Arquibancada”, reuniu no Museu do Futebol, em São Paulo, 350 torcedoras, representantes de 31 clubes, 44 organizações de 13 Estados brasileiros.
O lema do encontro foi “Resistência e Empoderamento”. Uma nova edição do evento deve ser realizada ainda em 2020 e as organizadoras acreditam que a participação será ainda mais expressiva.
“O que vimos foi um grande sentimento de sororidade. De que, juntas, somos capazes de debater o respeito nas arquibancadas e combater o machismo”, comenta Cristiane Abreu, uma das organizadoras do encontro.
Torcedora do Flamengo, Kiti, como é conhecida, conta que o movimento quer fortalecer a presença não só das torcedoras no estádio, mas também de profissionais do meio esportivo.
“Queremos abraçar todas as mulheres desse universo como, por exemplo, repórteres, árbitras e bandeirinhas”, explica.
Hoje, além das torcidas organizadas tradicionais, majoritariamente integradas por homens, os estádios abrigam grupos femininos. Agrupamentos de tendência crescente.
Coletivos como Mulambas da Gente, do Flamengo, Tricoloucas, do Bahia, Movimento Toda Poderosa Corinthiana, VerDonnas, do Palmeiras, Bancada das Sereias, do Santos, Expresso Feminino do Trem Fantasma, do Operário, e o Sãopraelas, do São Paulo.
Representatividade que pode ser vista também no futebol de Curitiba. Entre outros grupos, estão presentes as Gralhas da Vila, do Paraná, Gurias do Couto, do Coritiba e Las Chicas Atleticanas e Atleticaníssimas, do Athletico.
Denunciar e combater
Em julho de 2019, um homem foi preso dentro do Couto Pereira, estádio do Coritiba, após assediar uma adolescente. O ato foi reprimido por outros torcedores, que identificaram e denunciaram o assediador.
“Foi um episódio triste. Mas a gente percebeu, naquele momento, que ainda há muito para fazermos, para darmos força às mulheres dentro do estádio. É um assunto difícil, mas necessário. A gente acabou se acostumando a achar normal ver os caras olhando, mexendo conosco”, recorda Giuliana Souza.
Um caso marcou também as torcedoras do Paraná. Em um jogo na Vila Capanema, em fevereiro deste ano, uma torcedora acabou assediada por um motorista de um aplicativo de transporte, que tentou beijá-la à força.
“Um homem pode ter medo de ir sozinho em um jogo à noite, mas pelo perigo de ser assaltado, quem sabe. Já as mulheres temem por um estupro”, relata Gabrielle Bizinelli.
“Aquelas que não contam com companhia para ir aos jogos, devem procurar grupos femininos. Não se sintam sozinhas, amedrontadas. Somos uma rede de apoio. O seu lugar, mulher, é na arquibancada”, convida a paranista.
No estado do Paraná, denúncias de assédio nos estádios podem ser feitas na Delegacia Móvel de Atendimento a Futebol e Eventos (Demafe).
Expediente
Reportagem: Juliana Fontes. Edição: André Pugliesi. Imagens: Albari Rosa/Foto Digital e Arquivo Pessoal. Web design & Infografia: Chantal Wagner.