10 anos da violência no Couto
6.DEZ.2009 O dia em que o Coxa caiu
Uma década depois, cinco personagens revivem, em depoimentos à Gazeta do Povo*, o rebaixamento do Coritiba à Segunda Divisão do Brasileiro, no ano do centenário do clube. Ao apito final, empate por 1 a 1 com o Fluminense, no Couto Pereira, o campo foi invadido por torcedores no maior episódio de violência dentro de um estádio de futebol no Paraná.
Os relatos
Os textos abaixo foram produzidos a partir de depoimentos concedidos à Gazeta do Povo, com exceção da jornalista Ana Luzia Mikos. No episódio, 17 pessoas foram feridas e seis torcedores condenados pela Justiça – veja a situação atual dos envolvidos. Acesse ainda o vídeo especial “Dez anos do inferno verde” e veja a galeria de fotos
Parado no tempo
Anderson Rossa Moura, torcedor do Coritiba
Eu sonho frequentemente. Sonho que estou cozinhando. Que faço um linguado com crosta de macadâmia, o mesmo que fazia quando trabalhava no restaurante do hotel Deville Rayon com a chef Manu Buffara. Aí acordo e vejo que nada mudou.
O tempo parou pra mim em dezembro de 2009. Meu futuro era brilhante. Tinha 19 anos e trabalhava como assistente de cozinha. Queria ser chef. Se pudesse voltar no tempo, não teria ido àquele jogo. Na verdade, foi o acaso que me levou até lá.
Eu tinha ido fazer a prova do Enem naquele domingo. Saindo da PUC, soube que colocaram telões fora do Couto Pereira. Era um jogo decisivo. Convenci meu irmão, André, e fomos assistir à partida fora do estádio.
Fazia mais de um ano que eu não ia ao Alto da Glória. Entramos quando os portões foram abertos nos minutos finais. Lembro pouco, quase nada. Tenho flashes de muita gente saindo, de aglomeração. Perdi meu irmão no meio da confusão. Depois disso não me recordo mais.
Tomei um tiro de bala de borracha na cabeça. Foi da polícia. Hoje, quando vejo os vídeos, não me reconheço ali. Mas sei que era eu. Com o dedo em riste, apontava para os policiais que estavam no gramado. Não sei o que dizia. Mas não invadi o campo.
Acordei em um hospital. Tudo branco. Achei que havia morrido. E realmente quase morri. Foram 12 dias em coma, 19 na UTI. Não reconhecia ninguém. Não conseguia falar.
Tomei um tiro de bala de borracha na cabeça. Foi da polícia. Hoje, quando vejo os vídeos, não me reconheço ali. Mas sei que era eu. Com o dedo em riste, apontava para os policiais que estavam no gramado. Não sei o que dizia. Mas não invadi o campo. Estava na arquibancada. Qual o motivo? Os torcedores que estavam ali improvisaram uma maca com uma grade e me levaram para a ambulância. Não morri por milagre.
Perdoei o policial que atirou em mim. Quatro meses depois do fato, em audiência, ele me abraçou. Chorou. Pediu desculpas. Em outra audiência, há uns três anos, ele mal demonstrou remorso. Eu fiquei nervoso e saí. Isso doeu em mim.
As sequelas são parte da minha vida. Mexo o lado direito do meu corpo com dificuldade. Perdi massa encefálica. Esqueço nomes, tenho problemas de memória, dificuldade na fala. Sofro com convulsões. Elas chegam sem avisar.
Minha vida é tentar melhorar. Não posso desistir, nem ficar chorando. Tenho que tentar. Faço fisioterapia, fonoaudiologia, hidroginástica. Sou aposentado por invalidez. Agora estão querendo cortar os R$ 1.300 que recebo por mês. Disseram para voltar a trabalhar.
O tempo parou pra mim. Não tenho a vida que imaginava. Amava cozinhar. Vivi uma ruptura. Mas tento ser positivo, não reclamar. Ao estádio eu não volto. Não tenho vontade. Ainda torço para o Coxa, mas nunca mais irei lá.
Que bom que ainda posso sonhar.
Tarde maldita
Reimackler Alan Graboski, ex-líder da torcida Império Alviverde do Coritiba
Não sou bandido. Mas não nego que já me envolvi em algumas confusões entre torcidas organizadas. Eu era daquelas pessoas que dava um boi pra não entrar em uma briga. E uma boiada pra não sair.
Errei. Não me faço de vítima. Assim como outros 200 torcedores, invadi o gramado naquela tarde maldita de dezembro de 2009. Não agredi ninguém. Mas fui um dos seis condenados pelo quebra-quebra.
Na época, eu era vice-presidente da torcida organizada Império Alviverde. Tinha muito contato com os comandos dos bairros. Posso garantir que a invasão não foi premeditada.
Eu assisti à partida no segundo anel do Couto, como sempre. Desci para o andar inferior para tentar conter o pessoal. Perdi a cabeça. Entrei no gramado. E me arrependo todos os dias.
Fui eleito o grande culpado. Tenho minha culpa, sei disso. Atirei uma cadeira de plástico em direção à polícia. Só isso. A televisão mostrou, como se fosse eu, um cara jogando um banco inteiro nos policiais. Mas a culpa é minha. Estava onde não deveria estar.
Dez anos depois, pode parecer clichê, mas sou outra pessoa. Trabalho, tenho uma gráfica, faço faculdade de Design Gráfico. Minha vida é totalmente diferente.
Fui preso. Fiquei 180 dias numa cela de 8x3m com outros 11 detentos em Piraquara. Assaltantes, estelionatários, traficantes. Visita uma vez por mês. Manhã, tarde e noite ouvindo bandidagem. Foi difícil demais, principalmente para a minha família. Não desejo a ninguém.
Sai no dia 11 de junho de 2010. Véspera do Dia dos Namorados. A Valéria, hoje minha esposa, nunca me abandonou. Já são 23 anos juntos. Ela é uma guerreira. Respondi ao processo em liberdade.
Voltei para a torcida em 2012, como presidente eleito. Ajudei na reaproximação com a diretoria do clube. Posso dizer que virei amigo do ex-presidente Vilson Ribeiro de Andrade. E desde 2015 eu me afastei totalmente da Império. Só fui duas vezes ao estádio nesse período. Torço de longe. Sofro pelo Coritiba, mas não é como antigamente.
Em março de 2017, o Tribunal do Júri me condenou a oito anos e quatro meses de reclusão. Voltei para a prisão. Minha defesa conseguiu um habeas corpus dez dias depois. Mais tarde, a pena caiu para sete anos em regime semiaberto. Aguardo recurso em liberdade.
Dez anos depois, pode parecer clichê, mas sou outra pessoa. Trabalho, tenho uma gráfica, faço faculdade de Design Gráfico. Minha vida é totalmente diferente.
Sou um pai babão. A Rhaiany completa um ano em janeiro. Ela é a minha prioridade. Também continuo fazendo trabalho voluntário, coisa que vem lá da época da torcida, em um projeto social que atende menores vítimas de maus tratos. Lá eu sou o tio Rei.
Algumas pessoas ainda associam o meu nome ao Coxa, à organizada. Depois de alguns minutos de conversa ouço respostas parecidas, sempre dizendo que sou o oposto do que elas imaginavam.
Sei que não sou exemplo a ser seguido. Não gosto nem de lembrar de 2009. Voltar no tempo é impossível. Por isso pago a conta até hoje.
Fim do mundo
Pereira, ex-zagueiro do Coritiba
O juiz apitou e eu comecei a atravessar o campo. De uma ponta à outra. As pessoas passavam por mim, mas era como se eu não enxergasse ninguém. Nada. Estava desolado. Não aceitava. Não entendia. Era como se fosse o fim do mundo.
Cheguei próximo ao túnel e um rapaz veio direto na minha direção. Alguém que tinha invadido o gramado. Ele olhou pra mim e eu olhei bem nos olhos dele. Ele desviou. Só me dei conta do cenário, do que realmente ocorreu no campo, quando entrei no vestiário.
Eu sempre me envolvi muito com os clubes que defendi. Sempre me joguei de cabeça, me entreguei por inteiro, vesti a camisa. Hoje, vejo que até mais do que deveria, em certos momentos. Por isso foi tão difícil assimilar a queda.
Quando cheguei em casa, acabado, nós demos um abraço longo e silencioso. A sensação de vazio permaneceu por umas duas, três horas. E já pegamos a estrada na madrugada. Fomos para São Paulo. Foram as piores férias da minha vida.
Cheguei ao Coritiba em janeiro de 2009. Meses antes havia sido vice-campeão brasileiro com o Grêmio. Compreender que estava rebaixado logo no ano seguinte era muito complicado. Não tive condições de ajudar ninguém naquele momento, confesso.
Lembro perfeitamente do Ariel Nahuelpán, o argentino. Quando cheguei, tomei um susto, ele estava destruindo o vestiário. Cada um reage de um jeito. Os jogadores estavam espalhados, preocupados com suas famílias. Não teve oração. Não teve conversa. Não teve nada.
Minha família não foi ao estádio. Achamos melhor evitar. Quando cheguei em casa demos um abraço. Longo e silencioso. O silêncio foi absoluto por umas duas, três horas. Na madrugada pegamos a estrada para São Paulo. Foram as piores férias da minha vida.
É complicado para uma instituição do tamanho do Coritiba ser rebaixada. Nós, jogadores, sabemos do prejuízo para o clube. Entendemos a tristeza, a desilusão do torcedor. Tem muita paixão envolvida. Futebol é muito sério. Foi o pior momento da minha carreira.
Velório no vestiário
João Carlos Vialle, ex-dirigente do Coritiba
Eu sempre assisti às partidas do Coritiba na Social do Couto Pereira. Bem no cantinho, perto das cabines de rádio, onde normalmente não tem muito torcedor. Não foi diferente naquela tarde. Naquele desastre.
O jogo acabou e fui para o gramado. Estava com o Dirceu Krüger, o Maurício Cardoso e o pessoal da comissão técnica. Vi alguém caído, agredido. Como sou médico, corri para atender. Fui sem pensar. Foi rápido. Mais gente chegou para ajudar.
Depois fui para o vestiário. Desci o túnel. O clima lá dentro era muito, muito pior do que em um velório. Fui o único membro da diretoria a falar publicamente. Por respeito aos jornalistas, me vi obrigado.
Depois fui para o vestiário. Desci o túnel. O clima lá dentro era muito, muito pior do que em um velório. Fui o único membro da diretoria a falar publicamente. Por respeito aos jornalistas, me vi obrigado.
O presidente Jair Cirino, me parece, sequer assistiu ao jogo no estádio. Foi embora antes de começar. Ele sofreu muito. Foi ameaçado, mudou de endereço, teve de andar com segurança por meses.
Dentro do departamento de futebol teve gente que trabalhou contra. Fizeram o possível e o impossível para prejudicar. Assumi em agosto e disse que era eu quem mandava. Alguns não aceitaram. O problema era deles. Eu tinha a última palavra.
Mas tudo acabou em desastre. O jogo, o resultado, a atitude da torcida. Precisávamos vencer para permanecer na Série A. e eu estava otimista. Tomamos um gol de falta. Por causa de um jogador que estava na barreira, que prefiro não falar o nome, mas que simplesmente pulou e virou de bunda. Virou de bunda. A bola passou ao lado. Foi o gol que nos rebaixou.
Barbárie anunciada
Ana Luzia Mikos, jornalista
Eu era setorista do Coritiba em 2009 pela Gazeta do Povo. Era para ser um ano emblemático. Lembro que resgatei lindas histórias, personagens, momentos incríveis dos 100 anos do Coxa. Nos bastidores, contudo, era latente a angústia da torcida, a fragilidade administrativa e a incompetência do time.
Fui trabalhar naquele dia sabendo que, para o bem ou para o mal, seria “um jogo pra sempre”. Uma redenção comovente ou a degola do século. Foi para o mal.
Quase no fim da partida, com o descenso sacramentado, desci da tribuna de imprensa para ficar atrás do banco de reservas e acompanhar de perto como seria a movimentação, a reação dos jogadores e comissão técnica. Não deu tempo.
Fui trabalhar naquele dia sabendo que, para o bem ou para o mal, seria “um jogo pra sempre”. Uma redenção comovente ou a degola do século. Foi para o mal.
Em poucos instantes, o Couto entrou em ebulição. Uma selvageria por todos os lados. Correria, dentro e fora do campo, balas de borracha, bombas caseiras e de efeito moral, torcedores com paus e pedras, chuva de cadeiras arremessadas, policiais acuados e feridos.
Todos os jogos da última rodada do Brasileirão tinham acabado e a batalha estava sendo transmitida ao vivo para o país todo. As câmeras ávidas por captar aquele desespero focaram em um jovem que chorava à minha frente. Só que ele se abaixou no colo da namorada e eu fiquei na imagem.
Nenhum problema se eu não estivesse grávida e dezenas de amigos terem me visto na tevê. Meu celular não parou mais. “Saia já daí”, “Sua louca, o que você está fazendo?”, “Não é você nessa confusão no estádio, né?”. Até minha comadre Flavia Pesarini, que mora nos Estados Unidos, e via pela Globo Internacional, entrou em contato.
Só que além do fato de eu precisar, infelizmente, contar o que estava acontecendo, não tinha para onde ir. Quando sai para o estacionamento, fiquei ao lado de torcedores abaixada, com muito medo, em meio aos carros, tentando escapar do tumulto, das bombas e das balas de borracha que estavam cada vez mais perto. Alguns conseguiram refúgio no Santuário do Perpétuo Socorro.
Demorei para conseguir voltar à redação e começar a escrever sobre o desfecho do centenário. Transformado em boletim de ocorrência em um dos capítulos mais tristes do futebol paranaense.
Veja vídeo especial: “Dez anos do inferno verde”
Expediente
Reportagem: Fernando Rudnick. Edição: André Pugliesi. Imagens: Albari Rosa, Hamilton Bruschz, Valterci Santos e Daniel Castellano do arquivo Gazeta do Povo. Ilustração e design: Osvalter Urbinati. Web design: Marcos Jaski. Produção e edição de vídeo: Rodrigo Sierpinski.